Na coluna deste mês, trato de um tema cada vez mais presente nas discussões sobre o futuro do futebol brasileiro: a possível transição dos clubes, atualmente organizados como associações civis sem fins lucrativos, para o modelo de Sociedades Anônimas do Futebol (SAF). Nas últimas décadas, o tradicional formato associativo tem sido gradualmente substituído, em diferentes partes do mundo, por estruturas empresariais voltadas à profissionalização e à atração de investimentos. Esse movimento tem se acelerado com o avanço de legislações específicas e os impactos já são visíveis. Clubes como Manchester City e Paris Saint-Germain ilustram como a adoção de modelos empresariais pode impulsionar a performance esportiva — ainda que envolvam também uma crescente financeirização do esporte. No Brasil, o marco legal para essa transição surgiu com a Lei nº 14.193, em 2021. Na Argentina, a permissão para que os clubes adotem o modelo societário veio mais recentemente, no fim de 2024, abrindo um novo ciclo de debates sobre o futuro institucional do futebol no país.
No Brasil, clubes como Botafogo (com John Textor), Cruzeiro (com Ronaldo Fenômeno) e Vasco (com a 777 Partners) foram os primeiros a adotar o modelo SAF. A proposta era clara: substituir o amadorismo e a politização que marcavam décadas de gestão por uma estrutura moderna, com CNPJ próprio, governança corporativa, limite de responsabilidade para dirigentes e, sobretudo, instrumentos mais eficazes para lidar com dívidas históricas. Esses clubes tinham em comum passivos bilionários, gestão ineficiente e risco real de colapso financeiro — e viram na SAF uma oportunidade de sobrevivência e renovação. Em alguns casos, como o do Botafogo, o modelo tem apresentado avanços importantes, com maior investimento, melhora na estrutura e competitividade em campo. Mas o modelo também coleciona críticas, principalmente pela dificuldade de alinhar aporte financeiro com a cultura e a paixão do torcedor, e pela falta de transparência em diversas decisões. O Vasco se tornou, até aqui, um exemplo emblemático de implementação malsucedida. Desde a entrada da 777 Partners, o clube viveu uma sequência de problemas: promessas de investimentos que demoraram a se concretizar, desempenho esportivo fraco, trocas constantes de comando técnico e pouca comunicação com a torcida. Para completar, vieram à tona dúvidas sobre a solidez financeira da própria 777, que atrasou repasses e enfrentou processos judiciais no exterior.
Nesse contexto, o Flamengo se destaca por ter seguido um caminho completamente diferente — e, até aqui, bem-sucedido — sem precisar recorrer ao modelo SAF. A aposta foi numa transformação interna, com foco em profissionalização da gestão, austeridade fiscal, planejamento de longo prazo e meritocracia. O resultado? Uma reviravolta impressionante: de um clube atolado em dívidas, desorganizado e sem rumo em 2012, a uma potência financeira e esportiva em 2024. Esse caso levanta uma pergunta incômoda, mas necessária: será que a SAF é mesmo a única saída para os clubes brasileiros? Tenho minhas dúvidas — especialmente quando falamos de instituições com enorme torcida, tradição e capacidade de geração de receita. O Corinthians, por exemplo, precisa virar SAF? Ou teria, como o Flamengo, força para se reinventar por dentro? Fica a provocação. A seguir, trago alguns marcos que ajudam a entender como o Flamengo reconstruiu sua base — e virou referência dentro e fora de campo.
Até a virada de chave em 2013, o Flamengo era um clube mergulhado em desorganização e números alarmantes. Acumulava passivos fiscais e trabalhistas expressivos, não tinha qualquer planejamento orçamentário minimamente sério, vivia com salários atrasados, relatórios financeiros sem auditoria e um patrimônio líquido negativo que ultrapassava os R$ 400 milhões. A dívida total em 2012 chegou a R$ 750 milhões. Caso a reestruturação não tivesse sido iniciada no ano seguinte, esse valor, considerando a bola de neve de encargos financeiros e a má gestão recorrente, provavelmente teria ultrapassado os R$ 3 bilhões em 2024. O clube não tinha qualquer credibilidade no mercado — o que tornava ainda mais difícil renegociar dívidas e captar recursos. A maioria dos compromissos era de curtíssimo prazo, com taxas altíssimas, refletindo a percepção de risco que os credores tinham da instituição. Sem alternativas sustentáveis, o Flamengo recorria com frequência à antecipação de receitas de televisão e patrocínio, trocando dinheiro futuro por alívio imediato. Era um ciclo vicioso — e autodestrutivo. Ou seja, um cenário caótico! E como o jogo mudou?
Tudo começou quando um grupo de empresários com trajetória de sucesso no mercado — entre eles Eduardo Bandeira de Mello, Luiz Eduardo Baptista (Bap), Wallim Vasconcellos e Rodolfo Landim — lançou uma chapa para o triênio 2013–2015 e venceu as eleições do clube. Logo no início da nova gestão, o foco foi entender a real situação financeira do Flamengo: os balanços foram revisados, consultorias externas foram contratadas para mapear a dívida oficial e teve início um processo de negociação com credores. A missão era clara: recuperar a credibilidade do clube no mercado. O primeiro mandato de Bandeira de Mello foi marcado por medidas duras, mas necessárias — corte de gastos, redução significativa no orçamento do futebol, profissionalização da administração e início da regularização de passivos antigos. O clube passou a publicar balanços auditados anualmente, com detalhamento e transparência nas notas explicativas. Mesmo com elencos limitados, o Flamengo conquistou a Copa do Brasil de 2013, o que trouxe fôlego ao caixa e reforçou o apelo da marca junto a patrocinadores. Além da organização financeira rigorosa promovida desde 2013, certamente, a adesão ao Profut (programa federal criado em 2015 para permitir o parcelamento das dívidas fiscais dos clubes em condições mais favoráveis) em 2015 permitiu que o clube refinanciasse uma parte significativa de seus débitos tributários com prazos mais longos e juros reduzidos, além de garantir acesso a Certidões Negativas de Débito (CNDs) — documento essencial para firmar contratos com patrocinadores, captar recursos e operar com normalidade no mercado financeiro.
Ao analisar as demonstrações financeiras do Flamengo entre 2012 e 2015, fica evidente a impressionante evolução do clube em diversos aspectos. Três pontos merecem destaque especial: i) Receita recorrente: houve um salto significativo na previsibilidade do fluxo de caixa, com o clube se tornando cada vez menos dependente de receitas pontuais, como a venda de jogadores — que historicamente era uma “tábua de salvação” para fechar as contas. Até 2013, o Flamengo dificilmente recusaria uma boa proposta por qualquer jogador. Em 2023, recusou ofertas por atletas como Pedro e Wesley, sinal de uma saúde financeira antes impensável; ii) Superávit: o salto do déficit de mais de R$ 60 milhões em 2012 para um superávit superior a R$ 130 milhões em 2015 representa uma virada histórica — algo sem precedentes entre os grandes clubes brasileiros; iii) Dívida: além de reduzir o valor total, o clube alterou o perfil de sua dívida, alongando prazos e diminuindo encargos. As despesas financeiras, que superavam os R$ 50 milhões em 2012, deram lugar a uma receita financeira líquida de R$ 3,5 milhões em 2015. Em outras palavras, o Flamengo deixou de ser um pagador líquido de juros para se tornar um gerador de resultado financeiro positivo — reflexo direto da adesão ao Profut e da reconstrução da credibilidade junto ao mercado.
Caro leitor, na próxima coluna darei continuidade a esse tema, com foco no segundo mandato de Eduardo Bandeira de Mello, na gestão de Rodolfo Landim e nos desafios atuais sob a liderança do BAP. Caso tenha alguma dúvida sobre o tema, estou à disposição para esclarecimentos por e-mail. Até a próxima!