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A abertura de uma investigação pelos Estados Unidos contra o sistema de pagamentos instantâneos brasileiro, o PIX, colocou em evidência a utilização estratégica do direito como instrumento de guerra econômica. No último 15 de julho, o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) iniciou um procedimento com base na Seção 301 do Trade Act de 1974, após reclamações da associação norte-americana da indústria de tecnologia (ITI), que reúne gigantes como Apple, Google, Mastercard, Visa, PayPal e Meta. O alvo é o modelo adotado pelo Banco Central do Brasil, acusado de distorcer a concorrência ao atuar simultaneamente como regulador e operador do sistema.
Segundo a ITI, empresas estrangeiras são prejudicadas por regras que favorecem o PIX: bancos são obrigados a destacá-lo em seus aplicativos, players internacionais estariam excluídos do ecossistema e haveria benefícios tributários em relação a soluções como Apple Pay, Visa ou Mastercard. O Ministério das Relações Exteriores respondeu às críticas com uma carta entregue ao embaixador norte-americano em 18 de agosto, defendendo o PIX como política pública de inclusão financeira que ampliou o acesso da população a meios de pagamento digitais, reforçando a soberania monetária nacional.
O mecanismo jurídico que sustenta a investigação remonta ao contexto protecionista do pós-choque do petróleo de 1974. A Seção 301 concede ao USTR poderes para investigar práticas estrangeiras consideradas injustificáveis ou que restrinjam o comércio dos EUA. Em caso de confirmação, o governo norte-americano é obrigado a adotar medidas, que podem incluir negociações bilaterais ou acionamento da OMC. Atualmente, além do Brasil, há procedimentos em curso contra China e Nicarágua.
Embora em governos anteriores a seção fosse usada como base para litígios multilaterais, a conjuntura atual aponta para um cenário de negociações diretas, com maior pressão política e econômica. É nesse contexto que a Lei Magnitsky surge como reforço ao arsenal norte-americano. Apenas duas semanas após a abertura da investigação sobre o PIX, o governo Trump aplicou sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, com base nessa lei.
Aprovada em 2012 e ampliada em 2016, a Lei Magnitsky permite aos EUA sancionar, em qualquer lugar do mundo, indivíduos acusados de corrupção massiva ou violações graves de direitos humanos. As medidas incluem bloqueio de ativos em território norte-americano e proibição de entrada no país. Desde então, foi aplicada contra autoridades russas, sauditas, chinesas, latino-americanas e africanas. A inclusão de Moraes, porém, gerou controvérsia: ONGs como Transparency International e Human Rights First apontaram risco de uso político da legislação, o que poderia comprometer sua credibilidade.
Ainda que apresentada como resposta a questões de direitos humanos, a medida tem peso no tabuleiro econômico. Ao figurar na lista do Office of Foreign Assets Control (OFAC), qualquer operação em dólares que envolva Moraes deve ser bloqueada, mesmo por bancos sem presença nos Estados Unidos. Instituições financeiras brasileiras, temendo represálias, tendem a cumprir as injunções norte-americanas. O bloqueio de um cartão de crédito de bandeira americana, emitido pelo Banco do Brasil em nome do ministro exemplifica o alcance das sanções.
O uso da Lei Magnitsky nesse momento sugere uma relação direta com a pressão sobre o PIX. A interligação entre instrumentos jurídicos e interesses econômicos não é novidade. Leis como o Foreign Corrupt Practices Act (1977), o Helms-Burton Act (sobre Cuba) e o D’Amato-Kennedy Act (sobre Irã e Líbia) já foram empregadas em disputas internacionais. Multas bilionárias contra empresas europeias, como Siemens, Alstom, BNP Paribas e HSBC, consolidaram a percepção de que tais normas funcionam como armas de política industrial dos EUA.
Casos emblemáticos reforçam essa visão. Executivos da francesa Alstom foram presos em território americano por investigações de corrupção enquanto a General Electric negociava a compra da divisão de energia da companhia. Multas por violação ao FCPA atingiram cifras de bilhões de dólares para bancos europeus, enquanto instituições norte-americanas foram relativamente pouco penalizadas.
Nesse cenário, a ofensiva contra o PIX parece inserir-se em estratégia semelhante. Ao contestar o modelo brasileiro e acionar instrumentos como a Lei Magnitsky, os Estados Unidos aumentam o poder de barganha nas negociações. Para o Brasil, o embate envolve mais do que a defesa de um sistema de pagamentos: trata-se da preservação da autonomia regulatória e da capacidade de formular políticas públicas voltadas à inclusão financeira.
As conversas entre USTR e autoridades brasileiras estão apenas no início, mas os sinais já indicam que os EUA mobilizam um arsenal jurídico e político robusto. A questão que se coloca é se o PIX, concebido como símbolo de inovação e inclusão, resistirá à pressão de uma disputa que transcende os meios de pagamento e se insere na lógica mais ampla da guerra econômica global em que, mais uma vez, quem domina é quem controle o dólar.