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Petróleo, Disputa e Atuação dos EUA: Contrastes Entre 1986 e 2020

Publicado 09.04.2020, 15:31
Atualizado 09.07.2023, 07:32
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Os principais players da indústria mundial do petróleo estão se movimentando diante da crise imposta pela pandemia do coronavírus Covid-19, intensificada, no início de março, com o fim do acordo do corte de produção entre Arábia Saudita e Rússia no grupo denominado Opep+, que reúne membros da Opep com produtores independentes.

A geopolítica do petróleo, do ponto de vista teórico, é caracterizada por uma rede intrincada de atores em disputa. Esses conflitos ocorrem entre países produtores e consumidores na apropriação da renda e na definição de preços; entre companhias de exploração e países que hospedam essas operações na definição dos contratos; entre os próprios países produtores na disputa por uma fatia maior do mercado; assim como na disputa entre companhias estatais e internacionais por posições de destaque na hierarquia de decisões do mercado. Nessa rede, se confundem os limites entre as empresas que de fato atuam na indústria, e os Estados nacionais que buscam defender seus interesses do ponto de vista da segurança energética e do abastecimento interno.

Nesse contexto, Arábia Saudita e Rússia protagonizam a disputa mais recente, com intermediações dos Estados Unidos. O presente artigo busca mostrar que a intermediação americana atende a objetivos específicos e não é inédita na história do petróleo.

Para isso, primeiro é apresentado o cenário atual. Posteriormente, é feito um resgate da atuação americana durante a crise de oferta em 1986 - denominada em inglês como "oil glut". Por fim, contrapõem-se as evidências históricas com a conjuntura contemporânea.

Cenário em abril de 2020

O cenário atual é complexo e carregado de incerteza. Pelo lado da oferta, destaca-se a disputa entre Arábia Saudita e Rússia. Já pelo lado da demanda, a China, maior importador de petróleo do mundo, reduziu drasticamente sua margem de consumo, seguida, concomitantemente, da paralisação econômica mundial oriunda das medidas de isolamento.

Ambos fatores levaram o preço do petróleo, que já manifestava uma tendência de baixa nos últimos anos, para mínimos históricos (gráfico 1).

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A baixa do mercado petrolífero ensejou uma disputa de preços e o desalinhamento entre os países produtores. Perdura, pelo menos até a reunião entre os membros da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep) e convidados na quinta-feira (09), a falta de consenso em torno de uma redução da produção que pudesse reduzir o descompasso entre oferta crescente e demanda declinante.

Os países que integram a organização buscavam coordenar uma contração dos níveis de produção, entretanto, a Rússia, a princípio, rechaçou os acordos nesse sentido, rompendo uma união que ocorria entre os países nos últimos anos. A resposta saudita ao posicionamento russo veio através do aumento da produção de petróleo e da redução de preços através de descontos em mercados selecionados, pressionando ainda mais a tendência de queda dos preços.

Após a sinalização do presidente dos EUA Donald Trump de que um suposto acordo já estaria pré-desenhado entre Arábia Saudita e Rússia, o mercado ensaiou uma leve recuperação. Entretanto, a incerteza ainda é predominante, tanto sobre a efetiva realização desse acordo e o prazo que isso pode levar, como pelo engajamento dos países produtores. Basta verificar a volatilidade dos preços durante a reunião, com petróleo Brent oscilando entre queda de 3,17% a alta de 12% com especulações a respeito de um possível novo acordo de redução de oferta. Em meio a disputa geopolítica, os países se movimentam para defender seus interesses.

A priori, por um lado, a queda do preço afeta diretamente todo país produtor (1), pois reduz diretamente a receita das exportações, todavia, por outro lado, as estruturas de custo das empresas ao redor do mundo são altamente heterogêneas, o que altera a gravidade em que a baixa do mercado afeta os produtores.

Arábia Saudita

Entre os players que ensejam a disputa recente, a economia da Arábia Saudita, maior exportador de petróleo do mundo, sofre com a queda da receita, principalmente, pela participação majoritária do hidrocarboneto na geração de renda do país. Entretanto, o reino apresenta uma estrutura de produção com custos menores se comparado a outros países produtores (2) (cerca de US$ 2,80 o barril), e uma capacidade de produção de mais de 12 milhões de barris diários, o que concede um maior potencial de articulação para manter sua presença no mercado mundial, mesmo com a queda da rentabilidade.

Rússia

Já a movimentação da Rússia responde a três fatores principais. Primeiro, a indústria de petróleo e gás do país vislumbra um aumento da fatia do mercado internacional de petróleo com o enfraquecimento do poder de articulação da OPEP (3). Segundo, o país conta com um Fundo Nacional de Riqueza, acumulado em US$ 150 bilhões (9,2% do PIB nacional), que pode ser usado para equilibrar a perda de rentabilidade e garantir a saúde financeira do setor (4). Por fim, o país entende que uma articulação que possa ter uma resposta positiva nos preços poderia beneficiar os Estados Unidos, seu adversário na dimensão geopolítica.

EUA

Os produtores americanos de petróleo não convencional (shale oil) possuem uma estrutura de custo mais elevada em relação a produção convencional (5), além do fato de que essas empresas carregam atualmente um grau elevado de endividamento. Ambos fatores, no caso americano, exprimem o risco de falência nas condições vigentes (6).

Aqui, desnuda-se a proatividade dos Estados Unidos através do presidente Trump na articulação de um acordo entre os principais produtores de petróleo no mundo. O governo americano busca assegurar um preço de equilíbrio mais elevado, ou pelo menos, uma recuperação em relação ao patamar vigente que possa viabilizar a produção interna de petróleo não convencional no país.

A participação americana na indústria de petróleo está presente em praticamente toda a história do hidrocarboneto. Seja como um player importante do ponto de vista produtivo, ou como um agente central da geopolítica. Essas mediações ocorreram via atividades militares e diplomáticas para controlar regiões produtores, rotas de distribuição, reservas mundiais e níveis de preço.

Queda vertiginosa do preço do petróleo em 1986

Destaca-se a seguir a participação americana na articulação da oferta durante a crise de preços de 1986, quando o mercado voltava a nadar em petróleo depois de ter passado por dois choques de preço nos anos 1970.

Durante a década de 1980, um fato novo na organização e funcionamento dos mercados abala diretamente a rentabilidade do setor petrolífero. Os contratos de exploração, que até então possuíam um preço lastreado pela OPEP, passam a ser regidos por preços flexíveis, partindo do princípio do netback (7).

Essa nova característica, somada ao aumento da produção mundial, levaram a queda dos preços. De 1985 para 1986 os preços do petróleo bruto (WTI - West Texas Intermediate) despencam de U$ 31,75 o barril para U$ 11,50 em abril de 1986. Essa queda levou a uma disputa por market share entre OPEP e não membros, e entre os próprios membros da OPEP.

Irã, Argélia e Líbia reivindicavam quotas mais restritivas no âmbito dos membros do cartel para restaurar os preços. Países de produção elevada, como Arábia Saudita e Kuwait, permaneceram disputando mercado para garantir o escoamento da sua produção. Nesse ínterim, Irã e Iraque permaneciam confinados em conflitos militares.

Noruega se recusa a negociar com o cartel, porém, muda de posição quando assiste as principais receitas do país declinarem.

Posição dos EUA em 1986

Já o posicionamento americano é desenvolvido a seguir. Os Estados Unidos foram atingidos em larga escala com a baixa do mercado. Durante o choque, o país era uma dos países com maior custo de produção, além de ter passado por caras explorações frustradas no Alasca.

Duas opções eram colocadas na mesa. A primeira, era instaurar uma tarifa para resguardar a indústria doméstica do país, algo que destoava diretamente da Administração Reagan; ou, poderia atuar na zona de interesses da OPEP. Houve vários pedidos de tarifa em 1986, mas nenhum foi sinalizado pela administração Reagan.

Neste cenário, George Bush (8), então vice-presidente de Reagan, parte em uma missão ao Oriente Médio para discutir a questão do petróleo. A jornada de Bush, com visitas à Arábia Saudita e alguns Estados do Golfo, já constava na agenda do diplomata antes do colapso, entretanto, passaria a assumir um papel estratégico na deterioração dos preços.A viagem buscava atender interesses da indústria de petróleo e gás americana, consumidores domésticos e aliados diplomáticos.

A administração Reagan se apoiava, supostamente, na abordagem do livre mercado para lidar com os contratos de petróleo. Entretanto, essa abordagem exprimia uma inerente contradição. Quem mantinha os preços elevados no início da década de 1980, que viabilizava o desenvolvimento de polos energéticos no país, era o cartel formado pela OPEP. Logo, o apelo pelo livre mercado pairava no campo retórico. Essa contradição perduraria até a crise dos preços em 1986.

Quando os preços despencam, esse paradoxo fica evidente. Nas palavras do Secretário-Geral interino da OPEP, o que estava em processo era apenas a maximização da "concorrência absoluta". Logo, restava para os burocratas americanos assumir e arcar com as disputas do livre mercado, ou, sistematizar, pela via diplomática, o volume de oferta.

Atuação diplomática em 1986

Bush, relativamente contrariado pela administração do partido, escolhe a opção diplomática. De fato, a queda dos preços tinha efeitos nocivos sobre a indústria petrolífera americana e inviabilizava vários projetos de exploração. Ademais, os preços baixos tencionavam o aumento da demanda de petróleo, que, juntamente com a produção caindo, inundaria o país com as importações.

O planejamento inicial da viagem ao Golfo Pérsico era enfatizar o apoio dos Estados Unidos aos Estados árabes na guerra Irã-Iraque. No entanto, os preços agora surgiam como uma pauta estratégia para a administração americana.

A primeira parada de Bush foi em Riad. O diplomata, primeiro, jantou com ministros, depois, conseguiu um encontro com o rei saudita, enfatizando, entre outros temas, a necessidade da estabilização do mercado. Bush estava convicto de que os preços baixos seriam prejudiciais a indústria petrolífera americana.

Durante as negociações, o vice-presidente alertava para a questão das tarifas caso o problema não fosse equacionado. Uma suposta tarifa, caso fosse generalizada nos países consumidores, implicaria em perdas financeiras para os países produtores. É preciso pontuar também que os Estados Unidos atuavam como um aliado histórico da Arábia Saudita, e um possível enfraquecimento da economia americana poderia ter efeitos negativos para a cooperação militar que frequentemente fluía em assistência aos desentendimentos sauditas. Dentre todas as variáveis do jogo geopolítico, a viagem de Bush foi relevante para que os sauditas reconsiderassem os conflitos por participação de mercado que havia fortalecido a queda dos preços.

Nesse ínterim, liderado pelos sauditas, os países produtores estabeleceram um acordo em 1986 que pré-estipulava um “preço de referência” de U$18 por barril, aceito por produtores e consumidores, seguido de uma restauração das cotas do cartel. As variações de preços seriam combatidas a partir da mudança nas cotas de produção dos países membros do cartel e outros países independentes que decidiram pelo acordo. Dessa forma, os preços se recuperaram para níveis similares ao do início da década de 1970.

A crise do coronavírus em 2020

Contrapondo a situação atual com a crise da década de 1980, a incerteza por parte da demanda é ainda mais crítica atualmente, pois as estimativas sobre os impactos da crise do Covid-19 são muito precárias. Segundo a Agência Internacional de Energia, a indústria mundial de petróleo está passando por um choque sem precedentes na sua história (9).

Outra particularidade da conjuntura recente, é que a crise bate a porta em um momento que as empresas de petróleo e gás começaram a lidar com as implicações da transição energética (10). Adicionalmente, ainda não é certo se o acordo entre os produtores será bem-sucedido, nem o alcance que supostamente terá para limitar a produção.

A centralização política da maioria dos países do Oriente Médio permite uma articulação mais direta para diminuir a produção, já no caso dos Estados Unidos, por exemplo, a legislação antitruste impede uma colaboração entre produtores, dificultando uma movimentação nesse sentido.

Em um último contraste, novamente o governo americano tenta intimidar os produtores com a premissa das tarifas (11), de forma semelhante ao que ocorreu em 1986. Sobre o que é possível estimar para o caso dos EUA, perdurando as condições de rentabilidade, deve transcorrer-se uma reorganização do tecido industrial do setor, com concentração do mercado pelas empresas com melhor posicionamento.

Por fim, a partir de um breve resgate da atuação geopolítica mundial, há evidências para concluir que a intermediação americana sobre a oferta de petróleo não é espúria e muito menos inédita.

O que não há precedentes na história é a cooperação aberta que pode ocorrer entre os três maiores produtores de petróleo do mundo: Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos, evidenciando que mesmo com a mudança na matriz energética global, o petróleo permanece como uma commodity altamente estratégica e vital do ponto de vista da segurança energética.

Referências

TORRES FILHO, E. T.. O Papel do Petróleo na Geopolítica Americana. In: FIORI, José Luís (org.). O Poder Americano. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes. (2004 [2007])

YERGIN, D.. O petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2010.

Notas

1 Estimativas da Agência Internacional de Energia apontam para quedas entre 50% e 85% da receia líquida de países produtores selecionados (https://www.iea.org/articles/the-global-oil-industry-is-experiencingshock-like-no-other-in-its-history).

2 (https://www.washingtonpost.com/business/energy/by-pumping-at-will-saudi-arabia-hurts-oilinvestment/2020/03/15/189505da-6693-11ea-8a8e-5c5336b32760_story.html)

3 (https://www.ineep.org.br/post/leao-a-carta-capital-crise-expoe-enfraquecimento-do-poder-da-opep)

4 (https://exame.abril.com.br/economia/russia-aguentaria-preco-do-petroleo-baixo-por-ate-10-anos-dizgoverno/)

5 Apenas 16, das centenas de companhias de shale nos Estados Unidos atuam em campos onde os custos médios de produção estão a baixo de 35 dólares o barril (https://www.reuters.com/article/us-global-oilshale-costs-analysis/few-u-s-shale-firms-can-withstand-prolonged-oil-price-war-idUSKBN2130HL)

6 Cerca de 40% dos produtores americanos entram em risco de insolvência com os preços perto dos 30 dólares o barril, segundo estimativa do Federal Reserve Bank of Kansas City (https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-08/trump-forced-by-oil-war-into-unthinkable-pushfor-higher-prices)

7 O netback pricing refere-se a um sistema em que o preço de oferta acompanha o mercado a vista, menos uma margem de custo pré-estabelecida (TORRES FILHO, 2004).

8 George Buh já era conhecido na indústria. O ex-presidente foi dono de uma empresa independente de petróleo e um dos pioneiros no processo de exploração e produção offshore no Golfo do México. Entretanto, durante os anos 1960, trocou os negócios do petróleo pela política.

9 https://www.iea.org/articles/the-global-oil-industry-is-experiencing-shock-like-no-other-in-its-history

10 https://www.iea.org/reports/the-oil-and-gas-industry-in-energy-transitions 11 https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-04/trump-says-he-d-use-tariffs-if-needed-toprotect-oil-industry

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