Uma nova corrida por riqueza invisível
Em um cenário global marcado pela transição energética, pela digitalização da indústria e pela fragmentação das cadeias produtivas, a disputa por recursos naturais estratégicos entrou em uma nova fase. Os holofotes agora se voltam para um território até então invisível: o fundo do mar. A mineração em águas profundas, que por décadas habitou os laboratórios e os relatórios de prospectores audaciosos, entrou de vez na agenda de governos, mineradoras e analistas de defesa.
No centro dessa nova corrida estão os nódulos polimetálicos,crostas cobaltíferas e sulfetos hidrotermais que são nada mais que depósitos submarinos ricos em cobalto, níquel, manganês e elementos terras raras, essenciais para baterias, turbinas e semicondutores. A exploração destes depósitos já vinham sendo estudados há décadas por centros como Woods Hole (EUA), Universidade de Tóquio, GEOMAR (Alemanha) e, no Brasil, pelo CPRM e pela USP. O que mudou foi o contexto: a pressão por eletrificação, a guerra comercial e os avanços em robótica subaquática transformaram um tema de pesquisa em um vetor de política estratégica.
Essa nova etapa da disputa por minerais críticos amplia e aprofunda o cenário que analisei no artigo Terras Raras – o novo xadrez geopolítico e econômico, que recebeu grande repercussão entre leitores do mercado financeiro e do agronegócio. Se naquela análise a atenção estava sobre as reservas terrestres e as cadeias de suprimento industriais, agora o foco se desloca para águas internacionais, zonas econômicas exclusivas e regiões insulares vulneráveis, onde as regras são poucas e os riscos comerciais, socioambientais e geopolíticos são imensos.
A nova fronteira econômica está traçada. Mas a pergunta que se impõe é: estamos diante de uma solução para a escassez de minerais estratégicos ou prestes a abrir um novo capítulo de risco ambiental e disputa por soberania?
Uma coisa é certa: se não discutirmos seriamente a exploração dos fundos marinhos agora, talvez tenhamos que debater, com ainda menos preparo, a mineração em asteroides no nosso próximo artigo.
O que há no fundo do mar: o que há no fundo do mar que interessa ao mundo
O que transforma o fundo do mar em uma nova fronteira econômica não é apenas a vastidão de território inexplorado, mas o que está depositado sobre e sob ele. Estamos falando de formações geológicas com potencial para suprir parte considerável da demanda mundial por metais estratégicos, insumos sem os quais a transição energética e digital simplesmente não acontece.
Os três principais alvos da mineração em águas profundas são:
- Nódulos polimetálicos: acúmulos arredondados de minerais encontrados no leito oceânico, principalmente entre 4 e 6 mil metros de profundidade. Contêm manganês, níquel, cobalto e cobre, quatro metais fundamentais para baterias, turbinas e liga metálica industrial.
- Crosta cobaltífera: depósitos formados em áreas montanhosas do fundo do mar, ricos em cobalto, platina e terras raras leves. A demanda por cobalto, especialmente, explodiu com a eletrificação dos transportes e o avanço da microeletrônica.
- Sulfetos hidrotermais: concentrações de cobre, zinco, ouro e prata associadas a fontes termais submarinas, importantes para componentes industriais e circuitos eletrônicos.
A região Clarion-Clipperton, no Pacífico, entre o Havaí e o México, é o epicentro dessa nova corrida. Estima-se que ela contenha mais cobalto, níquel e manganês do que todas as reservas conhecidas em terra firme. Por isso, empresas como The Metals Company, Allseas e grandes grupos estatais chineses já operam sondas e naves exploratórias nessa área, sob concessão da International Seabed Authority (ISA).
Mas é justamente aí que reside parte do problema. Apesar da magnitude econômica envolvida, o mundo ainda não tem um arcabouço regulatório claro para a mineração em alto-mar. A ISA deveria publicar diretrizes definitivas para exploração comercial até 2025, mas enfrenta forte pressão de países insulares, ambientalistas e comunidades científicas. Isso criou um vácuo jurídico que pode ser explorado por grandes potências e empresas com mais capacidade técnica, política e financeira.
Enquanto isso, iniciativas governamentais de países como Estados Unidos, China e Noruega aceleram projetos internos de exploração, muitas vezes em águas sob sua jurisdição ou por meio de acordos bilaterais com países vulneráveis. A movimentação é estratégica: garantir acesso privilegiado aos minerais críticos antes que as regras se tornem mais rígidas ou a competição se amplie.
A corrida por esses metais já começou, mesmo que o juiz (a ISA) ainda esteja debatendo as regras do jogo. A International Energy Agency (IEA) projeta um considerável aumento da demanda por metais comparável à demanda que tivemos por petróleo do século passado.
O Pacífico é o novo Oriente Médio: soberania, dissuasão e poder
Durante o século XX, as disputas por petróleo moldaram alianças, guerras e rotas de influência. No século XXI, a nova commodity estratégica são os metais críticos e o novo tabuleiro, o Oceano Pacífico. A região, antes periférica na geopolítica global, tornou-se o centro de uma corrida silenciosa por controle, exploração e influência. Não é exagero dizer que o Pacífico está para os minerais do futuro como o Golfo Pérsico esteve para o petróleo do passado.
A China é hoje o país mais avançado nessa disputa. Além de dominar grande parte da cadeia industrial de processamento de minerais estratégicos, Pequim investiu fortemente em acordos com países insulares como Kiribati, Tonga e Nauru, onde firmou concessões de exploração em alto-mar. Ao mesmo tempo, pressiona por uma regulação mais flexível na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA), órgão das Nações Unidas responsável por licenciar atividades mineradoras em áreas que pertencem a todos, mas são defendidas por poucos.
Os Estados Unidos, por sua vez, vêm tentando recuperar terreno. Após anos de ceticismo em relação à mineração submarina, o governo americano mudou de postura e, mais recentemente, emitiu ordens executivas para acelerar projetos nacionais e formar parcerias com aliados estratégicos. No entanto, os EUA ainda enfrentam limitações por não terem ratificado a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), o que restringe sua capacidade formal de influenciar as decisões da ISA.
O Japão também investe na tecnologia de coleta e refino em águas profundas, com foco em autonomia de suprimentos e menor dependência da China. Já países como França e Alemanha financiam estudos técnicos e propõem uma abordagem mais cautelosa, com base em princípios ambientais e direitos intergeracionais.
Ao mesmo tempo, as pequenas nações insulares do Pacífico se tornaram peças-chave dessa nova geopolítica oceânica. Elas detêm vastas zonas econômicas exclusivas, mas enfrentam pressões financeiras, escassez de infraestrutura e, muitas vezes, dependência de ajuda internacional. Isso as torna alvos fáceis para acordos desequilibrados, nos quais se abrem as portas para a mineração em troca de promessas frágeis de desenvolvimento.
O jogo está montado. E o Pacífico deixou de ser um oceano entre potências para se tornar o oceano das potências. Uma nova disputa global por recursos escassos, travada em um território onde as regras ainda estão sendo escritas e reescritas, muitas vezes, por quem chega primeiro.
“Embora o debate esteja concentrado no Pacífico e nas grandes potências, o Brasil não é um coadjuvante nesse campo. Com a exploração do pré-sal, o país desenvolveu uma das maiores competências do mundo em tecnologias de perfuração, mapeamento e produção em águas profundas. A Petrobras (BVMF:PETR4) é referência global nesse tipo de operação e já demonstrou capacidade de integrar engenharia avançada com produção em larga escala sob condições extremas. O que falta, no entanto, é uma estratégia institucional que conecte esse know-how à agenda de mineração submarina, hoje muito mais discutida no exterior do que internamente. Se o Brasil quiser participar da definição das regras do jogo, precisa antes reconhecer que tem condições técnicas para disputar no mais alto nível.”
Quando um recurso muda um país: o que aprendemos com os Emirados
O acesso a um recurso natural estratégico, quando bem aproveitado, pode reescrever a história de um país. O caso dos Emirados Árabes Unidos é um exemplo claro. Até meados do século XX, a economia local se baseava na pesca e na coleta de pérolas. Com a descoberta e exploração das reservas de petróleo, os EAU se transformaram em poucas décadas em uma potência financeira e diplomática, com influência global muito além do que sua geografia isolada permitiria supor.
Outros exemplos reforçam esse padrão. A Noruega usou o petróleo do Mar do Norte para construir um dos fundos soberanos mais bem geridos do mundo. Já Botsuana transformou diamantes em educação e estabilidade macroeconômica. Em todos os casos, o recurso por si só não garantiu o sucesso. Foi a capacidade de articulação institucional, diplomática e financeira que transformou um achado geológico em vantagem geopolítica.
O paralelo com a mineração oceânica é claro. Países insulares do Pacífico, antes marginalizados, podem se tornar protagonistas globais ou, se mal assessorados, vítimas de exploração. A questão central não é apenas quem tem o recurso, mas quem sabe usá-lo como instrumento de soberania e desenvolvimento real.
As ilhas, os invisíveis e o impacto irreversível
Enquanto grandes potências e corporações avançam sobre o fundo do mar em busca de metais estratégicos, são os países pequenos e isolados que estão na linha de frente dessa transformação. As ilhas do Pacífico, que por décadas permaneceram à margem das decisões econômicas globais, agora ocupam o centro de uma controvérsia que une geologia, meio ambiente e justiça internacional.
Países como Tonga, Nauru, Kiribati e Palau detêm vastas zonas econômicas exclusivas (ZEEs) com potencial mineral ainda não explorado. Por exemplo, Kiribati possui uma ZEE de aproximadamente 3,5 milhões de km², enquanto Nauru, com apenas 21 km² de território terrestre, controla uma ZEE de cerca de 308.480 km². Tonga e Palau também possuem ZEEs significativas, com aproximadamente 660.000 km² e 604.000 km², respectivamente. Para efeito de comparação, a ZEE do Brasil é de cerca de 3,5 milhões de km², o que destaca a importância estratégica dessas áreas para os pequenos países insulares do Pacífico.
No entanto, essas nações também concentram ecossistemas frágeis, populações com forte vínculo cultural ao mar e economias altamente dependentes da pesca, do turismo e da biodiversidade costeira. A chegada da mineração submarina levanta questões urgentes: quem decide? Quem lucra? Quem arca com o risco?
Para muitos cientistas, estamos à beira de um experimento ecológico sem retorno. Estudos conduzidos por pesquisadores da Universidade de Exeter, Dr. Kevin Brigden (Greenpeace Research Labs), Dr. Pierre-Marie Sarradin (Ifremer, França), Dr. Paulo Sumida (IO-USP) e Globelaw destacam que a mineração em águas profundas pode causar danos irreversíveis aos ecossistemas marinhos, muitos dos quais ainda são pouco compreendidos. Esses especialistas argumentam que a falta de conhecimento sobre a biodiversidade das profundezas oceânicas torna a exploração mineral uma atividade de alto risco ambiental: ainda não entendemos completamente como esses ecossistemas funcionam.
Frente a esse cenário, países insulares como Fiji, Palau e Micronésia têm liderado campanhas por uma moratória global na mineração submarina. Suas lideranças argumentam que os impactos socioambientais seriam irreversíveis e que os benefícios econômicos prometidos pelas mineradoras dificilmente compensariam os riscos. Eles não pedem apenas mais tempo. Pedem que o debate seja feito com base na equidade, na ciência e na autodeterminação.
Essas nações, muitas vezes invisibilizadas nas grandes decisões multilaterais, agora levantam uma bandeira que ecoa globalmente: o direito de existir com segurança ecológica num mundo que corre atrás de tecnologia a qualquer custo. A pergunta que fica não é se a mineração submarina vai acontecer, mas a que preço, com quais garantias e para quem realmente importa.
E o Brasil? O pré-sal nos ensinou a olhar para baixo, mas estamos olhando o suficiente?
O Brasil detém uma das maiores zonas econômicas exclusivas (ZEEs) do planeta: são cerca de 3,6 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a quatro vezes a área do território da Amazônia Legal. É um território submerso pouco explorado, mas com potencial geológico imenso. Estudos iniciais indicam a presença de crostas cobaltíferas, nódulos polimetálicos e estruturas geológicas compatíveis com ambientes ricos em minerais críticos.
Do ponto de vista técnico, o país possui capital humano e institucional para operar nessa fronteira. A Petrobras é uma das empresas mais avançadas do mundo em engenharia de águas profundas e ultra profundas, com expertise reconhecida globalmente no pré-sal. A Marinha, o CPRM e universidades como a USP e a UFRJ também acumulam conhecimento relevante. O que falta, no entanto, é articulação política e visão estratégica.
O Brasil ainda não tem tradição nem estrutura institucional para organizar leilões internacionais ou exercer diplomacia comercial agressiva no setor mineral oceânico. Diferente da atuação em petróleo, em que a ANP e o Itamaraty atuam com sinergia, no caso da mineração oceânica não há coordenação entre ciência, comércio exterior, defesa e meio ambiente.
Ainda assim, é possível — e urgente— construir caminhos para que o Brasil participe dessa nova fronteira com inteligência. Algumas possibilidades incluem:
- Internacionalização da Petrobras como operadora ou parceira técnica de projetos em países insulares do Pacífico, que precisam de know-how confiável, mas não querem depender apenas da China.
- Criação de um consórcio nacional para pesquisa mineral submarina, envolvendo CPRM, universidades, Marinha e empresas privadas com interesse logístico e tecnológico.
- Participação ativa nas discussões da ISA (International Seabed Authority), com diplomatas e técnicos brasileiros contribuindo para a construção das regras, antes que elas sejam definidas por outros.
- Incorporação da mineração submarina ao planejamento de longo prazo da política industrial e energética brasileira, associando soberania, inovação e segurança de suprimentos.
O Brasil já demonstrou que sabe transformar desafios técnicos em protagonismo energético. O próximo passo é decidir se fará o mesmo em relação aos recursos minerais do fundo do mar ou se permitirá que outros, mais rápidos e mais articulados, ocupem esse espaço.
A nova fronteira está aberta, resta saber quem chega com consciência e quem chega apenas com pressa
A mineração em águas profundas não é mais uma hipótese distante. Ela está em curso, tecnicamente viável, geopoliticamente disputada e ambientalmente controversa. Como toda nova fronteira, ela traz promessas e perigos, oportunidades e dilemas.
Para países com recursos limitados e alta dependência externa, a exploração do fundo do mar pode parecer uma saída rápida para o desenvolvimento. Para grandes potências, é uma nova forma de projetar influência. Mas para cientistas, comunidades costeiras e defensores da biodiversidade, esse avanço pode significar um retrocesso irreversível.
O Brasil, com sua zona econômica exclusiva colossal e sua expertise comprovada em engenharia submarina, está em posição privilegiada para influenciar esse debate. Mas falta ao país uma visão clara, transversal e estratégica sobre o tema. Repetir o erro de chegar tarde, como em tantos outros capítulos da industrialização e da geopolítica de recursos, seria desperdiçar não apenas potencial, mas soberania.
A nova fronteira está aberta. A história mostra que quem chega primeiro ajuda a escrever as regras. Mas também mostra que os que chegam despreparados costumam pagar o preço mais alto. A escolha é nossa: entrar com consciência e liderança ou assistir de longe enquanto outros definem o futuro sob nossos próprios mares.
"Se não começarmos a debater com profundidade, o próximo artigo pode mesmo ser sobre mineração em asteroides, só que como coadjuvantes, não protagonistas."
Bons Investimentos.
Fontes e Referências para ampliar a discussão
- Demanda por Minerais Críticos: A crescente necessidade por metais como níquel, cobalto e manganês, essenciais para baterias e tecnologias verdes, impulsiona o interesse na mineração submarina
- Iniciativas Governamentais: Os EUA, sob a administração Trump, emitiram ordens executivas para acelerar a mineração em águas profundas, visando reduzir a dependência de minerais estratégicos da China
- Regulação Internacional: A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) ainda não finalizou as diretrizes para a mineração comercial em águas profundas, criando um vácuo regulatório que preocupa ambientalistas e governos
Tensões no Mar da China Meridional e Taiwan
- Expansão Chinesa: A China tem aumentado sua presença militar no Mar da China Meridional, construindo ilhas artificiais e instalando infraestruturas militares em áreas disputadas, desafiando decisões internacionais que consideram essas ações ilegais
- Resposta dos EUA e Aliados: Os EUA, juntamente com Filipinas, Austrália e Japão, realizaram exercícios militares conjuntos na região, incluindo o posicionamento de sistemas de mísseis antinavio em áreas estratégicas próximas a Taiwan, como forma de dissuadir ações chinesas
- Projetos Submarinos Chineses: A China planeja construir uma estação submarina profunda no Mar da China Meridional até 2030, o que pode intensificar as disputas territoriais e preocupações ambientais na região