Argentina: US$ 200 bilhões debaixo do colchão

Publicado 12.05.2025, 12:01

A recente decisão do governo de Javier Milei de pôr fim ao controle cambial que perdurava há quase seis anos marca uma guinada abrupta (e singular) na política econômica argentina. Ao convidar os cidadãos a “sacar o colchão” em dólares e utilizá-lo livremente, Milei sinaliza confiança em um novo regime cambial flutuante - bandeira que oscila hoje entre 1.000 e 1.400 pesos por dólar - mas também lança a economia em um terreno repleto de incertezas. Essa revolução monetária, viabilizada por um acordo de US$ 20 bilhões com o FMI, promete injeção de reservas e alívio temporário, mas pode se revelar um passo em falso se não for sustentada por fundamentos sólidos.

Ao derrubar o “cepo”, o governo mira atrair divisas frescas do agroexportador - cujas liquidações cresceram 32% em abril - e liberar o carry trade, que remunera especuladores com juros reais positivos em moeda forte. Esse apelo à livre operação, de fato, já reduziu o risco-país a 678 pontos básicos e estreitou o gap entre câmbio oficial e paralelo, sugerindo um primeiro êxito na unificação das taxas. No entanto, a volatilidade permanece elevada: o peso variou desde 1.290 até 1.135 por dólar em poucas semanas, e o índice S&P Merval recuou 0,9% em reação à maior transparência cambial.

Do ponto de vista técnico, há méritos nessa flexibilização. A interminável escassez de reservas e as múltiplas janelas de dólar criavam arbitragem e corroíam a confiança. A nova banda flutuante, somada a intervenções nos mercados futuros, oferece um arcabouço regulatório mais simples e previsível. A projeção de inflação em forte declínio nos próximos trimestres, a cerca de 30% até dezembro, pode se materializar se o Banco Central contiver a liquidez em pesos e opere vendas de dólares pontuais para mitigar choques abruptos.

Porém, do ponto de vista fundamentalista, persiste o dilema: a moeda doméstica só se estabiliza de verdade se houver credibilidade fiscal e acumulação de reservas. Até agora, o BCRA (Banco Central da República Argentina) segue comprando divisas apenas no piso da banda, e seu estoque de reservas líquidas ainda não se recuperou do colapso anterior. Sem uma trajetória clara de superávits, a simples liberalização pode gerar falsa sensação de segurança, enquanto investidores globais olham para o frágil balanço cambial como um risco latente.

Além disso, embora o acordo com o FMI assegure desembolso imediato de US$ 12 bilhões, trata-se de financiamento condicionado a metas rígidas de consolidação fiscal. A austeridade, ao reduzir o déficit primário de volta a patamares inéditos desde 2010, tem gerado repercussões sociais e políticas, testando a estabilidade do governo Milei. A aproximação estratégica a Washington - incluindo trâmites de defesa e alinhamento ideológico - reforça o fluxo de recursos, mas escora-se em empréstimos que podem se tornar onerosos caso o ciclo econômico internacional se deturpe – o que não é muito difícil vide questões políticas, geopolíticas e econômicas (tarifaço).

Em um olhar contrário, o fim do controle cambial pode, paradoxalmente, amplificar a tentação do dólar como porto seguro. Famílias e empresas que aguardavam na fila para comprar US$ 200 por mês se deparam agora com “liberdade plena”, o que estimula um rush de demanda antes de eventuais depreciações adicionais. Essa corrida, se não for contida por juros reais consistentemente elevados - atuais 34% ao ano nominal -, pode fragmentar o mercado financeiro e criar bolhas temporárias em ativos dolarizados, só resolvidas com intervenções onerosas.

No contexto internacional, a Argentina passa a figurar como caso de estudo para bancos centrais em economias emergentes. Países que experimentaram liberalizações bruscas, como Rússia em 2014 ou Turquia em 2021, enfrentaram fortes fugas de capitais e pressão inflacionária subsequente. A grande diferença, no entanto, está no grau de reservas relativas: a Argentina parte de um ponto muito mais vulnerável, o que exige disciplina de caixa e gestão de expectativas de longo prazo.

Para investidores que buscam alocar recursos na Bovespa Argentina ou em títulos soberanos, a lição é clara: é preciso calibrar o timing de exposição. Entrar cedo demais em ações locais pode render ganhos pontuais quando o carry trade atrai capital especulativo, mas também deixa exposto ao giro repentino de carteira quando o fluxo inverte. Por outro lado, títulos dollar-linked e bônus do Tesouro americano, com hedge embutido, ganham atratividade como proteção contra eventuais repiques de instabilidade.

Em última instância, o grande teste de Milei não será a execução técnica da liberalização, mas a capacidade de manter o regime cambial em sintonia com uma agenda de reformas estruturais: privatizações, redução de barreiras ao investimento direto estrangeiro e um pacto de longo prazo para o controle de gastos públicos. Sem isso, a remoção abrupta do cepo pode transformar-se em uma “vitória de Pirro” monetária - em que o curto alívio cede lugar a um ciclo renovado de incerteza e depreciação.

Em suma, o convite de Milei para que os argentinos retirem seus dólares do colchão é, ao mesmo tempo, um teste de fé e um passo ousado em direção à modernização do regime cambial. A eficácia dessa guinada dependerá menos da banda flutuante e mais da sustentação de políticas fiscais responsáveis, da acumulação de reservas e da comunicação clara com o mercado. Caso contrário, a Argentina corre o risco de trocar um sistema opaco e ineficiente por um novo regime que, embora transparente, precisa de substância para resistir às turbulências globais e preservar a confiança dos investidores.

Últimos comentários

Carregando o próximo artigo...
Instale nossos aplicativos
Divulgação de riscos: Negociar instrumentos financeiros e/ou criptomoedas envolve riscos elevados, inclusive o risco de perder parte ou todo o valor do investimento, e pode não ser algo indicado e apropriado a todos os investidores. Os preços das criptomoedas são extremamente voláteis e podem ser afetados por fatores externos, como eventos financeiros, regulatórios ou políticos. Negociar com margem aumenta os riscos financeiros.
Antes de decidir operar e negociar instrumentos financeiros ou criptomoedas, você deve se informar completamente sobre os riscos e custos associados a operações e negociações nos mercados financeiros, considerar cuidadosamente seus objetivos de investimento, nível de experiência e apetite de risco; além disso, recomenda-se procurar orientação e conselhos profissionais quando necessário.
A Fusion Media gostaria de lembrar que os dados contidos nesse site não são necessariamente precisos ou atualizados em tempo real. Os dados e preços disponíveis no site não são necessariamente fornecidos por qualquer mercado ou bolsa de valores, mas sim por market makers e, por isso, os preços podem não ser exatos e podem diferir dos preços reais em qualquer mercado, o que significa que são inapropriados para fins de uso em negociações e operações financeiras. A Fusion Media e quaisquer outros colaboradores/partes fornecedoras de conteúdo não são responsáveis por quaisquer perdas e danos financeiros ou em negociações sofridas como resultado da utilização das informações contidas nesse site.
É proibido utilizar, armazenar, reproduzir, exibir, modificar, transmitir ou distribuir os dados contidos nesse site sem permissão explícita prévia por escrito da Fusion Media e/ou de colaboradores/partes fornecedoras de conteúdo. Todos os direitos de propriedade intelectual são reservados aos colaboradores/partes fornecedoras de conteúdo e/ou bolsas de valores que fornecem os dados contidos nesse site.
A Fusion Media pode ser compensada pelos anunciantes que aparecem no site com base na interação dos usuários do site com os anúncios publicitários ou entidades anunciantes.
A versão em inglês deste acordo é a versão principal, a qual prevalece sempre que houver alguma discrepância entre a versão em inglês e a versão em português.
© 2007-2025 - Fusion Media Limited. Todos os direitos reservados.