Respeito imensamente os colegas analistas de valores mobiliários e invejo os gestores de fundos, profissão (que, penso eu) deva ser uma das mais clássicas e interessantes do mercado financeiro. Tenho amigos brokers, sócios de assets e de casas de análise. São pessoas da mais alta capacidade que, de tão acima da média, fariam miséria em qualquer mercado financeiro parrudo, como o americano ou europeu.
Conto com um gerente de contas aplicado, esforçado mesmo, com outras milhares de contas como a minha para tratar em um banco. Deve ser difícil e cansativo para alguém que estudou tanto, perseguir metas insanas e ser inquerido, ao final do expediente sobre ter batido ou não a meta de “títulos de capitalização”.
Também tenho um assessor de investimento. Ele não é um cara que monta modelos econométricos, nem constrói simulações de Monte Carlo. Muito pelo contrário: tecnicamente ele está bem aquém dos meus amigos brokers e analistas. No final ele é bem esforçado.
Mas, o que todos esses excelentes profissionais têm em comum?
A fábula da águia e do João-de-Barro
A águia e o joão-de-barro eram muito amigos e compartilhavam o mesmo território. A águia era imponente, vívida, admirada por todos por suas habilidades de voo, em que a velocidade e espaço eram milimetricamente calculados. Enquanto isso, o nosso Johny era um pássaro pequeno, mas com muita habilidade para voar entre as árvores. Além disso, ele era extremamente habilidoso na construção de ninhos, sendo esse um talento único.
Certo dia, o local onde os dois viviam passou por mudanças drásticas. Árvores altas foram substituídas por espaços abertos e arbustos mais baixos. A águia, que dependia das árvores para caçar suas presas, viu-se desafiada pela nova paisagem e pela falta de abrigo. Várias águias disputavam as poucas árvores que sobraram e a maioria tinha medo de caçar muito próximo ao chão. Elas eram especialistas em poucas empreitadas.
O joão-de-barro, por sua vez, conseguiu encontrar novas oportunidades, adaptando-se tranquilamente às árvores menores e aos espaços abertos, caçando com facilidade. Quando não encontrava árvores, construía a sua casa sobre postes e construções. Tudo isso se dava graças à sua versatilidade e persistência, já que para conseguir construir uma casinha, ele fazia centenas de viagens com o material necessário.
Essa fábula é uma excelente analogia do mercado financeiro brasileiro dos últimos 10 anos e os impactos sobre o seu mercado de trabalho.
Na maioria das carreiras clássicas, a oferta por profissionais se descolou da demanda. Simplificando, a concorrência por vagas de profissionais analistas, gestores de carteira, consultores de investimento (como o meu gerente) e brokers se tornou exageradamente alta. E você sabe: todo excedente faz com que o preço seja reduzido. Sobra de mão de obra é igual a salário menor. Essa é uma das principais queixas, por exemplo, de todos os analistas de valores mobiliários que eu conheço.
Nesse aspecto, algumas são as causas da “substituição das árvores altas”. Usando como exemplo os colegas analistas, a “estilingada” que as corretoras independentes tiveram após a crise do Subprime fez crescer a necessidade por esse tipo de profissional, o que foi complementado, mais tarde, pelo nascimento da maioria das casas de análise. Alguns analistas se tornaram verdadeiros popstars, com salários altos e bônus generosos. Hoje, muitos deles sobrevivem (e muito bem) das redes sociais.
Essa época passou e o mercado de corretoras se fundiu, basicamente, em um duopólio. Quanto mais “sinergias” eram aproveitadas nos processos de M&A, mais profissionais eram ceifados, e não apenas na área de análise. O mesmo ocorreu com brokers e gestores.
Os colegas bancários passaram por algo parecido nos grandes bancos. O número de instituições vem sendo reduzido há mais de 20 anos, mas esse talvez não seja o maior problema. Essas instituições investiram pesadamente na redução de sua estrutura física, e tenho certeza de que você já notou isso, passando por alguma rua e notando que ali, até ontem, havia uma agência do Bradesco (BVMF:BBDC4) ou do Itaú (BVMF:ITUB4).
Eu sei que você deve estar pensando nos bancos digitais. As instituições financeiras também pensaram a mesma coisa, e criaram os seus. Acontece que a operação utilizada nos serviços (graças a Deus) utiliza muita tecnologia, reduzindo tempo de atendimento e o número de rotinas. Isso criou demanda por profissionais de tecnologia, marketing, backoffice e comercial. Contudo, profissionais como o meu camarada gerente acabaram perdendo espaço.
Voltando a fábula, concluímos que há falta de árvores para o abrigo das águias. Mas, e o joão-de-barro? Ele existe?
Sim, ele existe e existia mesmo quando tinha que disputar espaço com outros pássaros imponentes. Ele conseguiu sobreviver à Selic de 25%, ao risco cambial e às ideologias políticas, tudo graças à sua versatilidade e persistência.
De quem nós estamos falando? De um profissional resiliente que durante toda a sua vida se acostumou a fazer centenas de viagens para construir uma casinha, mesmo que pequenina. Estamos falando do assessor de investimento.
Quem sempre lidou com pouco: o guerreiro
O investidor brasileiro vem descobrindo agora, recentemente, quem é e o que faz um assessor de investimento. A explicação para isso é fácil: até 2016 praticamente ninguém investia usando corretoras. Lembra? Título de capitalização, previdência, poupança...
Nesse ano, apenas 500 mil CPFs estavam cadastrados na B3 (BVMF:B3SA3). A partir da queda acelerada da Selic, e em paralelo à atuação dos influenciadores digitais e o maior acesso à tecnologia, no primeiro trimestre de 2023 esse número havia sido multiplicado por 10, alcançando 5,3 milhões de investidores cadastrados na bolsa. Muitos rentistas precisaram se mexer à procura de novos fluxos de caixa.
Para se investir na bolsa é necessário o uso de uma corretora ou distribuidora de valores mobiliários. Mas elas não possuem sedes físicas como os bancos e também não gastam tanto dinheiro em propaganda na televisão. Então, como essas empresas conseguem os clientes que vão negociar ações, fundos imobiliários, BDRs de grandes empresas estrangeiras, ETFs ou derivativos na bolsa?
Sim, por meio do nosso versátil e persistente joão-de-barro – digo – assessor de investimento.
A Resolução CVM 178/2023 é o conjunto de regras vigente para essa profissão. Ela cita em seu artigo 3º que a atividade de assessor de investimento abrange a “prospecção e captação de clientes”. Para isso, o assessor pode ser sócio, empregado ou terceiro prestando serviço a um escritório de assessoria de investimento. Ele e seu escritório agem como representantes das corretoras e distribuidoras, nesse trabalho de captação e assessoramento aos clientes (que são das corretoras) a respeito de todas as informações dos produtos e serviços oferecidos por essas instituições financeiras.
Não é um trabalho fácil, muito pelo contrário. Imagine passar boa parte do tempo telefonando, fazendo videoconferências ou se encontrando com pessoas que passaram a vida inteira com todas as suas economias nos bancos tradicionais, para tentar convencê-las, primeiro, a abrirem uma conta em uma corretora de valores. Por isso a analogia ao joão-de-barro, com várias idas e vindas.
Muitas pessoas sequer sabem o motivo da existência das corretoras. Só que esse é apenas o primeiro problema. Depois de todos esses percalços, o assessor ainda precisa convencer esse cliente a transferir a custódia dos seus investimentos para a nova instituição, que não tem agência física, não faz PIX e onde tudo é resolvido pelo celular ou computador.
Depois vem a terceira barreira: descrever e recomendar produtos de investimento, regras de tributação, liquidez, risco... Viu como é muito mais fácil oferecer uma Previdência, seguro ou título de capitalização?
Só que agora, de acordo com as mudanças da nova regulação, até isso o assessor pode fazer. E há outras vantagens: o assessor de investimento não precisa de ensino superior ou qualquer tipo de experiência prévia. Muitos escritórios trabalham remotamente ou permitem jornadas flexíveis. O modo, muitas vezes pouco importa. O que é importa é que o assessor traga sempre mais e mais clientes às corretoras e ao escritório.
Aqui tem demanda
Ao final de 2022 havia 22 mil assessores de investimento credenciados à Ancord (Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, Câmbio e Mercadorias). Essa é a entidade responsável por aplicar as provas de qualificação, apurar a documentação e certificar os candidatos a assessores.
Desse número, mais de 17 mil já estavam vinculados a algum dos mais de 1.200 escritórios de assessoria do mercado brasileiro. Para se ter ideia, nos Estados Unidos esse número se aproxima de 350 mil, com quase 20 mil escritórios atuantes.
Novos assessores são disputados a tapa pelos escritórios. Gerentes de banco, assistentes de gerência, profissionais da área private ou qualquer um que possa trazer uma carteira de clientes têm seus passes, literalmente, comprados. A Ancord credencia quase 500 novos assessores por mês, mas esse número é incompatível com a alta demanda de instituições como XP (BVMF:XPBR31), BTG (BVMF:BPAC11) e Safra.
Esse é um cenário totalmente inverso ao das profissões clássicas do mercado financeiro. E não para por aí: a partir de junho deste ano, passou a ser permitido o investimento em escritórios por sócios que não são assessores. Então, não se surpreenda ao ouvir por aí que uma empresa do setor alimentício decidiu comprar ou aportar milhões de reais em um escritório de assessoria.
O apetite da turma dos escritórios só aumenta, até pelo baixo custo necessário para se colocar a estrutura de pé. A maior corretora brasileira estima algo entre R$ 2 mil e R$ 5 mil por metro quadrado para um investimento inicial, que inclui um espaço mínimo para infraestrutura, salas para os assessores, recepção e tecnologia. Muitos empreendedores preferem iniciar seus trabalhos em coworkings, como filiais de escritórios renomados. Passado o tempo e com aumento da experiência, eles criam as suas próprias marcas.
Mesmo que alguns escritórios de assessoria tenham empatado muito dinheiro em custo fixo, com sedes suntuosas e de muito luxo para atrair clientes de alta renda, a assessoria cresce com estruturas mais enxutas. A legislação permite assessores CLT, mas a maioria é dos profissionais são autônomos. Assim, os encargos são menores e movimentos de expansão das marcas são possíveis. Daí a necessidade de mais e mais assessores.
Como o assessor de investimento é remunerado?
Essa é a pergunta mais importante.
O assessor não tem qualquer tipo de consistência quanto à sua renda. Assim, quem espera pela chamada “estabilidade rasa”, ganhando um salário mensal para trabalhar das 9h às 18h, deve esquecer completamente essa profissão. Na assessoria o que vale é uma montanha russa de emoções, levada à base de 99% de negativas, com taxas de conversão extremamente baixas. Isso significa que a cada 100 contatos, apenas 5 aceitam marcar uma reunião que poderá gerar apenas um novo cliente.
Com os clientes, a remuneração do assessor é um tanto complexa. Se o investidor compra e vende ações, BDRs, contratos futuros ou qualquer outro tipo de valor mobiliários, o escritório recebe uma parte da corretagem. Por outro lado, se o cliente investe em fundos de investimento, mensalmente o escritório receberá uma parte da taxa de administração. Outros produtos, como renda fixa ou operações estruturadas, pagam a chamada taxa “na cabeça”, que significa receber uma parte sobre o valor nominal da operação apenas uma vez.
Em seguida, o escritório repassa uma porcentagem desses recursos para o assessor. A depender da estrutura que o escritório poder oferecer ao profissional o repasse tende a variar muito. Em escritório maiores, com gastos elevados em marketing para a captação de leads (os possíveis clientes), o repasse tende a chegar a 50%. Já em escritórios menores e com pouca estrutura a oferecer, esse repasse pode ser maior. Aqui, um mesmo profissional faz de tudo: procura clientes, telefona, marca reuniões e participa delas.
Algumas métricas são muito mencionadas no mercado de assessoria. A primeira é de que a captação de recursos de um assessor médio deve alcançar pelo menos R$ 1 milhão mensal. A outra é de que a remuneração anual desse assessor deva se aproximar de um patamar entre 0,5% a 1,3% do patrimônio sob a sua custódia. Pensando em um assessor com R$ 30 milhões custodiados, na média teríamos uma remuneração mensal pouco superior a R$ 20 mil.
Obviamente não são todos que, após seis meses ou um ano no ofício, chegarão a alcançar essa custódia e remuneração.
O conflito de interesses e o “fee fixo”
A Comissão de Valores Mobiliários determina que deve ser respeitada a adequação de qualquer produto ou serviço financeiro ao perfil do cliente. Isso inclui seus objetivos, horizonte de tempo, liquidez, risco, dentre outros. É mandatório e está acima de qualquer profissional ou instituição.
O problema é que alguns produtos oferecem maior remuneração final ao assessor e ao escritório. Desse modo, muitas vezes o assessor acabava “empurrando” aos clientes produtos que não se encaixavam no seu perfil para ganhar mais. Esse tipo de conduta quase condenou a indústria de advisors nos Estados Unidos, até que o modelo de remuneração fixa foi adotado.
O chamado fee fixo é um modelo de remuneração em que o escritório (e o assessor) são remunerados por meio de uma taxa fixa sobre a custódia do cliente (o dinheiro que o cliente tem na instituição). Essa taxa pode girar entre 0,5 e 1% ao ano, sendo provisionada diariamente e cobrada todo mês. Crescendo em uso, o fee fixo reduz o conflito de interesses entre a remuneração do assessor e o bem-estar do cliente, garantindo transparência ao processo de assessoria.
O perfil do assessor
Só em 2022, 6.400 novos assessores foram credenciados, ultrapassando a barreira de 500 por mês. O perfil é esmagadoramente masculino, com 79% de homens atuando como assessores, embora haja um consenso na indústria de que as mulheres sejam profissionais com desempenho comercial superior aos colegas. No Sul e Sudeste estão concentrados 86% dos profissionais, que segundo a Ancord têm entre 26 e 45 anos de idade em quase 70% dos casos.
Assessores aprovados no exame de qualificação – 2011 a 2022
Apesar de a profissão não exigir ensino superior, 66% dos assessores são graduados e 21% possuem alguma especialização, algo que os escritórios passaram a enxergar com bons olhos. Se é nativo da área comercial, melhor ainda. Mas, se também possuir a certificação internacional CFP de Planejador Financeiro, aí sim o perfil está completo.
Tem que ser o golden e não o gato
Foi o que o meu assessor disse: “na assessoria você tem que ser o golden retriever, e não o gato”. É claro que eu perguntei o porquê, e a resposta foi bem excêntrica.
Na assessoria de investimento 80% do trabalho é relacionamento. Não é necessário o conhecimento técnico que brokers ou analistas possuem. É claro que o profissional tem que dominar os produtos oferecidos pela corretora, mas se há alguma demanda específica, essas instituições disponibilizam os seus serviços e alguns escritórios maiores montam até suas próprias mesas de operação. Dessa maneira, o profissional conta com todo o aparato técnico.
O que o assessor precisa fazer é estar presente na vida do cliente. Mesmo com a falta de profissionais, é totalmente normal que assessores tentem tirar clientes de ticket alto de outros assessores. Então, é necessário resiliência e, muitas vezes, estômago. Isso significa ligar para o cliente e não ser atendido, ser atendido grosseiramente, marcar reuniões e ficar esperando, ou mesmo ser desprezado.
“Por que agir como golden?”, explicou o meu assessor. Porque mesmo depois de tudo isso você vai continuar mandando mensagens, dando bom dia e boa semana, levanto material de qualidade e sempre a postos para qualquer eventualidade. Funciona do mesmo jeito que o seu golden quando você dá uma bronca nele: 5 segundos depois ele vem até você balançando o rabo como se nada tivesse acontecido. “Não importa o que o cliente diga ou faça, você digere, tenta esquecer e age como um golden”.
“Se eu fizer isso com o meu gato ele vai ficar uma semana sem chegar perto de mim”, ele me disse. “E se você ficar uma semana longe de quem tem dinheiro e precisa de assessoria, outro assessor vai tomar o seu lugar”. Para ele, ser “rancoroso” como os felinos não levaria o assessor a lugar algum. “Sem rancor e engolindo sapos”.
Depois de uma semana em que decidi estudar o universo dos assessores, o meu assessor me telefonou. Disse que um dos seus clientes tinha trazido as contas de todo mundo da família, todos com o perfil private. Eu o parabenizei e perguntei como ele tinha feito para conseguir, porque ele já tinha me dito que esse cliente era insuportável e o tratava mal.
“Simples: agi como golden. Nunca como gato”.