O Federal Reserve divulgou recentemente os cenários hipotéticos de supervisão para o teste de solvência de instituições financeiras dos EUA em 2023. Esse teste é realizado anualmente para saber como seria o desempenho dos bancos em um ambiente recessivo. Os resultados desse teste em um "cenário de supervisão extremamente adverso" são usados para definir os requisitos de capital dos grandes bancos.
Neste artigo, vamos analisar os pressupostos do teste de solvência de 2023 e também discutir quais áreas cruciais dos bancos dos EUA ainda são negligenciadas e não estão sendo devidamente testadas pelo Fed. Em nossa visão, os atuais testes de solvência realizados pelo banco central americano não refletem as condições financeiras concretas das instituições financeiras dos EUA em um quadro gravemente recessivo.
Primeiramente, é importante ressaltar que os novos pressupostos não são tão distintos dos adotados no ano passado, se observarmos as tendências gerais.
Em um cenário extremamente adverso em 2023, a taxa de desemprego nos EUA atingiria o pico de 10% no 3º tri de 2024, o que implica um aumento de 6,5% em comparação com o nível do 4º tri de 2022. No ano passado, o Fed considerou um aumento de 5,75% na taxa de desemprego, mas o pico foi o mesmo, 10%.
O cenário de 2023 também prevê um nível significativamente maior de juros, em vista dos aumentos realizados no último ano.
No cenário de 2023, os preços dos imóveis residenciais apresentam uma queda de 38% (contra 28,5% no cenário de 2022), enquanto os preços dos imóveis comerciais recuam 40% (sem alteração em relação ao cenário do ano anterior). Um declínio mais acentual nos preços dos imóveis residenciais também se deve a um ponto de partida mais alto, na medida em que os valores dessas propriedades cresceram em 2022. Portanto, pode parecer uma mudança, mas não é.
Vale notar que os pressupostos principais para os mercados de ativos, como os preços das ações e o aumento dos spreads dos títulos corporativos, preveem agora um quadro menos grave. No cenário de 2023, o spread entre as taxas de títulos BBB e as treasuries de 10 anos cresce para 5,75% no 3T23, o que representa um aumento de 3,5 pontos percentuais em relação ao 4T22. Do 4T22 ao 4T23, o preço das ações caiu 45%. Para fins de comparação, o cenário de 2022 apresentava um aumento de 4,75% nos spreads dos títulos corporativos e um declínio de 55% nos preços das ações. Embora os novos pressupostos para os mercados de ativos também se devam aos novos pontos de partida, cabe ressaltar que o cenário de 2023 para esta área parece menos grave em comparação com o de 2022.
Fonte: Fed.
A seguir, gostaríamos de discutir algumas áreas críticas que, em nossa visão, ainda estão sendo subestimadas pelo teste de solvência do Fed.
A estimativa de perdas com trading requer uma abordagem mais conservadora
A parcela de valores mobiliários no balanço dos bancos é bastante grande, sendo que, em alguns deles, esses títulos chegam a representar cerca de 40% dos seus ativos totais. Alguns bancos têm exposição a ações de fora dos EUA, mas a maior parte se refere a títulos federais, municipais e corporativos do país. No cenário extremamente adverso, o Fed considera que as taxas de curto prazo cairão para zero, enquanto as de longo prazo, medidas pelo rendimento da treasury de 10 anos, recuará abaixo de 1%. Com isso, os bancos registrarão ganhos de reavaliação dos valores mobiliários que estão em seu balanço. Esses ganhos devem praticamente compensar quaisquer prejuízos em ações, dado que a parcela destes ativos para a maioria dos bancos é menor.
Em nossos relatórios anteriores sobre os grandes bancos dos EUA, mencionamos que os títulos de longo prazo podem gerar enormes perdas para uma instituição em um ambiente de juros em alta. Parece que o Fed está começando a perceber que seus testes de solvência atuais não estimam perdas potenciais com trading de forma conservadora. Neste ano, pela primeira vez, o Fed publicará um componente exploratório adicional de choque de mercado.
De acordo com o banco central, o choque exploratório de mercado é caracterizado por uma recessão com pressões inflacionárias induzidas por expectativas de inflação mais altas. Dessa forma, esse cenário implica taxas muito mais altas para os títulos do Tesouro americano, em comparação com "o cenário extremamente adverso", e seria muito interessante ver as perdas dos bancos com reavaliações negativas das treasuries e de outros títulos em seus balanços. No entanto, ainda não sabemos como o Fed realizará esse teste e quais serão os pressupostos utilizados.
Fonte: Fed.
O risco de default de contrapartes é medido corretamente?
Em nossos artigos anteriores, discutimos em detalhes que os grandes bancos dos EUA têm dezenas de trilhões de derivativos de balcão em seus balanços e extrapatrimoniais. Acreditamos que esses contratos carregam um enorme risco para um banco em um ambiente volátil quando há uma chance muito alta de default de contrapartes.
O Fed diz que os bancos dos EUA estão sendo testados quanto a esse risco.
Porém, se dermos uma olhada na metodologia do banco central americano, veremos que esse risco não é devidamente mensurado. De acordo com a instituição: "Grandes bancos com transações substanciais ou operações de custódia são obrigados a incorporar um componente de cenário de inadimplência de contrapartes em seu cenário de supervisão extremamente adverso" e "em conexão com o componente de cenário de default de contrapartes, esses bancos são obrigados a estimar e relatar possíveis perdas e efeitos relacionados no capital, associados à inadimplência inesperada de contrapartes, capaz de gerar maiores perdas em seus derivativos e transações de financiamento de valores mobiliários, incluindo títulos de crédito e atividades de recompra ou revenda."
Em outras palavras, apenas as perdas da maior contraparte estão sendo incorporadas ao teste de solvência e, mais importante ainda, essas estimativas são fornecidas pelos bancos. Dado que os derivativos de balcão carecem de qualquer transparência, essas estimativas de perdas relacionadas à contraparte não são muito confiáveis em nossa opinião.
Incompatibilidade dos vencimentos também está sendo ignorada
Esta é outra questão importante que não está sendo testada pelo Fed. Vários bancos americanos apresentam grande incompatibilidade de vencimentos entre seus ativos e passivos. Em um artigo recente sobre o Capital One, mostramos que 84% dos títulos do banco têm vencimento superior a 10 anos. O Capital One não divulga o vencimento médio da sua carteira de depósitos, que é a maior parte do seu passivo; no entanto, é bastante provável que seja muito inferior a 10 anos, especialmente porque a instituição atualmente não oferece depósitos com prazo superior a cinco anos. Essa incompatibilidade nos vencimentos entre os ativos e passivos do banco pode gerar problemas de liquidez em um ambiente volátil, representando um risco considerável para os depositantes.
As pressuposições para variáveis que descrevem as condições econômicas internacionais são demasiadamente moderadas
Em seu “cenário extremamente adverso”, o Fed também pressupõe variáveis que descrevem as condições econômicas internacionais.
Fonte: Fed.
Essas projeções não levam em consideração o fato de que a economia mundial já está em uma grave recessão, em nossa visão. Por exemplo, a queda do PIB da zona do euro é bastante moderada, ao passo que a recessão nos países emergentes da Ásia parece ser muito leve, já que o PIB da região caiu 1,7% e 0,4% no primeiro e no segundo trimestres de 2013, respectivamente, antes de começar a crescer.
Os bancos dos EUA aumentaram significativamente sua exposição às economias internacionais nos últimos anos. Por exemplo, a carteira de crédito comercial fora dos EUA do Bank of America (NYSE:BAC) cresceu de US$ 29 bilhões no EF2009 para US$ 128 bilhões no 1S22. 33% dos empréstimos corporativos do Goldman Sachs (NYSE:GS) foram concedidos a clientes da EMEA (Europa, Oriente Médio e África), o que também foi mencionado em nosso artigo sobre o banco.
Acreditamos que essas projeções moderadas para as economias internacionais não mostram a magnitude real das perdas potenciais para os bancos dos EUA caso ocorra uma recessão grave.
Conclusão
O Fed está negligenciando questões cruciais em seu teste de solvência, como a qualidade de crédito das carteiras de financiamento imobiliário e perfis dos mutuários, parcelas de ativos não essenciais e itens fora do balanço. Para fins de comparação, todos os bancos que encontramos em Saferbankingresearch.com foram exaustivamente testados nesses quesitos e são bem superiores em todos os aspectos.
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Se você deseja conhecer melhor nossa metodologia de testes, pode ler mais a respeito aqui.