Na semana passada, a conceituada revista The Economist publicou uma matéria intitulada Como lidar com a crise política do Brasil[1]. O próprio subtítulo da reportagem traz a resposta, a solução ou o caminho indicado pelo semanário britânico: Quem é [ou quem for, quem será] presidente importa menos que a continuação das reformas econômicas e políticas.
Poucos dias antes disso, o sempre incisivo Arthur Lula efetuou um disparo ainda mais certeiro aqui no Terraço Econômico: Com ou sem Temer, haverá Reforma da Previdência[2]. Antecipando tendências e argumentos que seriam replicados – sem a mesma pujança, é importante destacar – pela The Economist, meu colega de Terraço mostra, por A mais B, a contabilidade deficitária da Previdência e deriva daí a necessidade imperiosa e incontornável da referida reforma:
A reforma da previdência será feita. Não adianta espernear e nem negar a realidade. Pode ser hoje, pode ser daqui 5 anos ou daqui 10. A matemática pune. Tenha em mente: o debate não é se terá ou não reforma, por que ela é INEVITÁVEL. A questão é o seu desenho, a sua intensidade e a data da sua aprovação.
O argumento de Arthur Lula, repetido de maneira mais superficial pelos britânicos, é sólido: há uma situação crítica muito bem diagnosticada por instrumentos de econometria e protocolos de administração pública, segundo os quais a situação atual é insustentável e – no longo prazo – catastrófica, do que se pode concluir que reformas precisam necessariamente acontecer. O salto das premissas (diagnóstico e projeção futura) à conclusão (necessidade das reformas) é de um rigor impecável, respeitando o que há de melhor disponível hoje em racionalidade econômica. No entanto, não é apenas a racionalidade econômica que está em jogo na questão.
Uma analogia médica sobre racionalidades e escolhas
Aproveitarei o exemplo da dobradinha Pedro Lula e Renata Veloso, também aqui no Terraço[3], e me servirei de uma analogia médica: imagine que um(a) paciente seja diagnosticado(a) com uma condição médica qualquer, para a qual exista um tratamento comprovado, com altas chances de sucesso; caso contrário, sem o tratamento, o(a) paciente certamente morrerá no curto prazo (questão de dias, semanas ou poucos meses). O tratamento, entretanto, é extremo e deixará consequências indeléveis (p.ex.: uma amputação, um tratamento cujo efeito colateral seja causar esterilidade, perda de visão, audição, mobilidade nas pernas, etc). Sem o recurso ao tratamento, tem-se (por assim dizer) a morte certa – ou antecipada, pois certa ela é para todos nós. Com recurso ao tratamento, uma vida prolongada, com algum sacrifício envolvido no trade-off[4].
Pergunta: o(a) paciente deve necessariamente se submeter ao procedimento sugerido pelo(a) médico(a)? Parece óbvio que a resposta é um sonoro não! A não ser que consideremos apenas a racionalidade médica, segundo a qual a saúde (e a vida) é o valor máximo a ser perseguido, promovido e preservado, somos obrigados a reconhecer que há uma pluralidade de valores em jogo (incluindo a noção de vida digna, o desejo de evitar o sofrimento, etc.) e, portanto, de racionalidades presentes. A multiplicidade de racionalidades que se manifestam em fenômenos complexos é o que nos permite entender e valorizar a liberdade de escolha do(a) paciente em questão no caso hipotético e compreender a decisão tomada – embora possamos, naturalmente, discordar dela.
As racionalidades na esfera pública e o fundamento da democracia
De maneira semelhante, só podemos afirmar a necessidade das reformas se aceitarmos (pelo menos) uma de duas pressuposições: a) a racionalidade econômica é – se não a única – a mais importante no caso das reformas em pauta (da Previdência, trabalhista, etc.); b) a opinião majoritária (ou mesmo consensual) dos melhores e maiores especialistas num determinado assunto é justificativa e fundamento suficiente para a tomada de decisão por parte de agentes do Estado. Como já tratei da primeira pressuposição num texto aqui no Terraço[5], vou me concentrar agora na segunda.
Ainda que uma determinada opinião sobre um tema seja consensual entre os maiores economistas (ou médicos), e ainda que ela seja verdadeira e certa, isso não basta para obrigar o poder público a tomá-la. Vivemos numa democracia representativa, na qual “[t]odo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único). Isso significa que o fundamento das tomadas de decisão por parte de agentes estatais está, em última análise, na transferência da soberania popular que se dá por meio da eleição de representantes – que nomearão outros funcionários ou farão as leis que determinarão como eles serão recrutados.
Para o bem ou para o mal, a responsabilidade de um agente público é para com a população, sobre cujo poder se legitima a própria investidura de suas funções. Isso é tanto mais verdadeiro e forte no caso de representantes eleitos: no limite, é ao conjunto universo dos representados (todos os cidadãos) que ele ou ela deve prestar contas. A coluna de ontem do Por quê? Economês em bom português, na Folha de São Paulo, acerta em cheio ao reconhecer isso[6].
A ideia de que especialistas sejam capazes de legitimar ação política não é democrática e tem nome: epistocracia – das palavras gregas episteme (conhecimento) e kratos (poder) – ou o governo dos sábios. No caso desse sistema político, cabe aos mais educados, esclarecidos, sábios e conhecedores de um assunto dirigir a sociedade, e é de suas opiniões que emana a legitimidade do poder político.
A crítica de Platão à democracia, no Livro VI da República, é célebre: devemos entregar o comando de um navio rumo ao mar agitado a um conjunto aleatório de cidadãos ou àqueles, dentre eles, mais hábeis e melhor treinados em matérias náuticas? Da mesma forma, dirá Platão, o comando da pólis deve ser exercido por quem se dedica à reflexão sobre assuntos políticos e sociais, que seriam os únicos com direito a votar e a serem votados. No mesmo sentido, atualmente, Jason Brennan, professor de filosofia política da Universidade de Georgetown e estudioso da (ir)racionalidade eleitoral[7], critica a ideia de que a democracia seja um regime bom e moral. Em seu livro Contra a democracia [Against Democracy], Brennan argumenta, a partir de evidências empíricas, que os eleitores somos mal informados e, portanto, votamos de maneira irracional. Isso estaria na raiz de muitas das mazelas sociais e seria sanado com a substituição da democracia pela epistocracia.
De volta à realidade
Não há dúvidas de que a democracia – e principalmente sua versão representativa contemporânea – seja passível de muitas e duras críticas. No entanto, somos – como a maioria dos Estados ocidentais – um Estado democrático de direito, e é essa noção que deve servir de pano de fundo para nossas discussões políticas, econômicas e sociais.
Cabe ao povo, segundo as regras de nosso jogo político, eleger os representantes que lhe pareçam os melhores. Ainda que mal informados e incorrendo em erro – elegendo alguém que apoia posições contrárias às minhas –, a escolha democrática é legítima. Fatos supervenientes – como o uso massivo de dinheiro ilegal para influenciar o resultado das urnas ou o envolvimento de representantes em escândalos de corrupção – retiram a legitimidade dos representantes, e estes devem sofrer as consequências e ser substituídos de acordo com o estabelecido nas regras eleitorais.
Foi por isso que, ao defender as eleições indiretas em caso de vacância da Presidência, aqui no Terraço[8], acrescentei:
Quem quer que assuma, deve se comprometer a realizar duas tarefas: 1) não aprovar nenhuma reforma estrutural, reconhecendo a ausência de legitimidade do atual Congresso para tanto e transferindo essas decisões para a legislatura que assumirá em 2019; 2) garantir a transição democrática, especialmente por meio do aprofundamento das investigações envolvendo parlamentares, funcionários públicos de qualquer instância e membros do setor privado – respeitando, sempre, o devido processo legal –, e permitindo à sociedade civil construir alternativas políticas para o novo ciclo eleitoral.
Isso não quer dizer que as reformas não sejam desejáveis, nem que os economistas que as apoiam estejam equivocados, mas apenas que isso não basta. É necessário um elemento de legitimidade política e democrática que está ausente do cenário político brasileiro atual. Sem convencer a população dos benefícios das reformas, mil gráficos e reuniões de gabinete pouco importarão, pelo menos enquanto continuarmos a ser uma democracia.
Democracia implica arcar com suas próprias escolhas. Implica, inclusive, a liberdade de escolher errado e de sofrer as consequências nefastas disso. Quem crê que estamos a caminho de uma decisão equivocada tem apenas uma alternativa: convencer o maior número possível de pessoas disso, para que elas sejam melhor informadas, mudem suas opiniões e as promovam dentro da arena política, elegendo ou pressionando representantes para reverberar o novo posicionamento.
Não falemos em necessidade das reformas, mas em legitimidade. Não falemos em necessidade das reformas: convençamo-nos, enquanto sociedade, dos benefícios delas.
Por Rafael Barros de Oliveira (Terraço Econômico)