Por Geoffrey Smith
Investing.com -- O vento mudou e é hora de a Mary Poppins da Europa partir.
Ela o faz em seus próprios termos, com sua aprovação ainda extremamente alta após 16 anos no poder - uma proeza tão rara na competitiva política democrática que é tentador ver as suas conquistas como prova irrefutável de grandeza.
Mas isso seria errado. Sua grandeza equivale apenas a ter surfado a inacreditável onda de boa sorte que ela teve no início da sua carreira, e ter defendido tanto quanto possível o status quo que ela herdou.
Angela Merkel deve a sua grande chance em 2005 à decisão precipitada do seu antecessor, Gerhard Schroeder, de convocar novas eleições antes que os benefícios das suas reformas no mercado de trabalho se fizessem sentir. Merkel herdou todos os seus ganhos na forma de taxa de desemprego mais baixa e de um sistema de auxílio-desemprego muito mais eficiente, enquanto Schroeder colheu toda a ira de uma classe eleitoral tradicional que se sentia traída. As divisões internas que atormentaram o Partido Social Democrata a partir de então o tornaram praticamente inelegível, o que facilitou a possibilidade de Merkel ocupar e monopolizar o centro político.
Uma vez acomodada no poder, Merkel colocou os interesses alemães acima dos europeus repetidas vezes. Em 2011, na esteira do desastre de Fukushima, ela acelerou unilateralmente o fechamento dos reatores nucleares restantes da Alemanha, para fortalecer a sua posição política interna contra o Partido Verde. As consequências disso podem ser vistas hoje: um sistema energético frágil com preços estratosféricos, bem como uma dependência contínua do linhite, o mais sujo de todos os combustíveis fósseis, inibindo as políticas alemã e europeia em matéria de mudanças climáticas.
Já em 2015, Merkel pressionava pessoalmente os reguladores dos EUA para que certificassem os motores a diesel sujos da Volkswagen (DE:VOWG) como sendo limpos. A esta altura, a pressão alemã sobre as instituições da UE no sentido de encobrirem os efeitos da poluição do diesel na saúde ajudou a criar a maior crise sanitária da Europa – cerca de 500.000 pessoas por ano na UE sujeitas a uma menor expectativa de vida devido à poluição do ar, segundo as estimativas do European Environment Bureau.
A influência do lobby exportador da Alemanha levou-a a tomar medidas reiteradas que põem em perigo a segurança da Europa a longo prazo. Ela tem pisado em ovos nas relações com a China e a Rússia, receosa em perder o acesso aos seus mercados. Tudo o que isso conseguiu foram as invasões da Ucrânia e da Geórgia, a supressão das liberdades de Hong Kong e o aumento de crimes cibernéticos e espionagem. Ela também cedeu a autocratas mais próximos, recusando-se a adotar uma linha mais dura contra os governos da Polônia e da Hungria, apesar de seus insultos contínuos ao Estado de Direito – o que teoricamente seria um valor europeu fundamental.
Mesmo na única ocasião em que Merkel mostrou verdadeira coragem moral, na sua abordagem à crise de imigrantes de 2015, foi uma política que não levou em conta seus vizinhos europeus - nem os países na linha da frente, como a Grécia e a Itália, nem o Reino Unido, onde sua movimentação foi fatídica nas mãos de uma campanha pelo Brexit que a usou para explorar o medo de uma imigração descontrolada.
Se Merkel alguma vez agiu pelos interesses mais amplos da Europa, foi apenas porque estes eram impossíveis de separar dos interesses mais específicos da Alemanha. A sua maior realização - evitar o colapso do euro entre 2010 e 2012 - foi motivada pela consciência de que ninguém tinha mais a perder com esse resultado do que a Alemanha.
"As coisas não podem ir bem para a Alemanha se forem mal para os nossos vizinhos", foi o seu mantra nos sombrios dias entre 2009 e 2012. (De maneira típica, não era um mantra original, mas sim emprestado de Hans-Dietrich Genscher, o Ministro das Relações Exteriores de uma época anterior).
A sua resposta à crise do euro foi um desastre para grande parte do continente: uma camisa de força de austeridade não só para o sul da Europa mas também para a Alemanha, sob a forma de “Schuldenbremse", ou "freio da dívida". O que se seguiu foi uma década de crescimento perdido, caraterizada por uma medonha política econômica desequilibrada: a política fiscal era apertada demais e precisou ser compensada por uma política monetária frouxa demais. Os ganhos em riqueza que poderiam ter sido acumulado pelos assalariados foram acumulados, em vez disso, por proprietários de bens, especialmente habitação.
O desequilíbrio só agora está sendo resolvido. No ano passado, confrontada com uma emergência econômica com a qual as doutrinas de orçamento equilibrado não conseguiam lidar, Merkel quebrou o seu próprio tabu e jogou o seu peso atrás de um plano que explicitamente coloca os contribuintes alemães na balança para empréstimos em larga escala da União Europeia. Na ocasião, como sempre, a Chanceler demonstrou apenas a flexibilidade suficiente para impedir que o status quo se quebrasse.
Dezesseis anos dessa abordagem mantiveram o show (mas show de quem?) na estrada. Mas eles comprometeram as políticas digitais e das mudanças climáticas da Europa, impediram-na de resolver um perigoso vazio de poder criado pela retirada dos EUA e permitiram que o autoritarismo nacionalista avançasse num continente onde já causou danos imensuráveis.
Seu sucessor terá que agir melhor se a Europa quiser fazer frente a seus desafios de longo prazo. Mas quem entre seus potenciais sucessores será capaz de resistir em copiar sua inegável fórmula de sucesso?