Por Lisandra Paraguassu e Ricardo Brito
BRASÍLIA (Reuters) - Em quatro meses, o governo de Jair Bolsonaro se dividiu em duas trincheiras, em que o pragmatismo dos militares vem se chocando com o lado ideológico do Palácio do Planalto, em um movimento que tem assustado aliados, paralisado o governo e irritado os generais.
Fontes ouvidas pela Reuters confirmam a sensação de paralisia que nem mesmo a aprovação da reforma da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara consegue apagar.
"Não é apenas uma sensação, é um fato. Estamos perdendo tempo, a economia parada, o desemprego aumentando e a gente discutindo besteira", disse à Reuters uma fonte com trânsito entre os generais palacianos.
O cerne da divisão, apontam as fontes, são as dificuldades causadas pelo excesso de ideologia que cerca o núcleo civil do presidente.
Ao formar o governo, Bolsonaro se cercou de militares da reserva em vários cargos considerados chave. No Planalto, os ministros do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, são generais da reserva, assim como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Floriano Peixoto.
No entanto, influenciado pelos filhos, o presidente deu espaço a nomes ligados ao escritor Olavo de Carvalho, jocosamente chamados de "olavetes" dentro do governo.
Estão nessa lista o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o primeiro ministro da Educação, Ricardo Vélez, e seu sucessor, Abraham Weintraub e, principalmente os filhos de Bolsonaro, Carlos, Eduardo e Flávio, e o assessor especial da Presidência, Felipe Martins.
Até agora, os militares têm conseguido frear iniciativas que consideram mais danosas ao governo, como a ideia apresentada por Bolsonaro ainda na campanha eleitoral de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém ou de apoiar uma intervenção armada na Venezuela.
Dentro do grupo militar, no entanto, a frustração por não conseguir avançar em uma agenda mais pragmática vem se avolumando.
"Os militares estão insatisfeitos porque estão vendo os erros e não são ouvidos em nada. Tudo é à revelia", disse uma fonte com relações na alta cúpula do governo. "Acho que os militares não podem deixar isso continuar, precisam ser mais duros. Afinal, o governo está associado também à imagem deles."
Uma outra fonte explica que a questão ideológica vem bloqueando algumas ações de governo e a própria interlocução de Bolsonaro com o Congresso e outras forças da sociedade --o que afeta diretamente as negociações no Legislativo.
"Muita gente procura o Planalto e não consegue interlocução, porque pode ser vinculada a alguma coisa que eles não querem se associar. Mas ele não é o presidente de quem votou nele, é o presidente de 200 milhões de brasileiros", disse a fonte.
"FANATISMO BURRO"
Um dos auxiliares mais próximos de Bolsonaro, Santos Cruz, mostra também alguma irritação com o excesso de ideologia no governo. Ao ser perguntado se isso deveria ser deixado de lado, respondeu: "Completamente. Todo fanatismo é burro, não é?"
O próprio ministro já foi alvo do escritor Olavo de Carvalho, o guru dos ideológicos governistas. Ao ser criticado pelo ministro, Carvalho usou as redes para uma onda de ataques ao general, inclusive dizendo que Santos Cruz "não presta".
À Reuters, o ministro negou que haja "alas" no governo.
"Em primeiro lugar eu acho que não existe grupo militar. Em segundo, classificar alguém como 'olavete' é uma classificação medíocre. Eu não vejo um grupo militar, mas o outro eu também não reconheço como grupo, acho que nem existe", afirmou.
Santos Cruz reconhece, no entanto, que o governo tem perdido tempo com ruídos vindos de um radicalismo excessivo.
"Está tendo muito ruído de periferia. No centro das coisas até que as coisas estão funcionando. Uma coisa é olhar o núcleo, a outra é olhar a periferia que está causando ruído, por pessoas até sem expressão, mas que continuam com radicalismo irracional. Então você tem brigas e ataques", disse.
"A rede é um canal aberto. É diferente quando você tinha mídia tradicional. Quando a campanha acabava, o recurso técnico acabava. Agora não, a campanha continua, todo mundo continua discutindo a mesma coisa, continuam brigando, todo mundo critica todo mundo, quem ajudou na campanha acha que pode continuar dando opinião no governo", analisou.
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, o governo passa por crises periódicas e outras mais permanentes. Até hoje não conseguiu, por exemplo, resolver a interlocução com o Congresso. A aprovação da reforma na Previdência na CCJ, comemorada no Planalto, é vista por líderes mais experientes no Congresso como um sinal ruim.
Algo que deveria ter sido aprovado rapidamente --a proposta do ex-presidente Michel Temer passou em uma semana sem modificações-- levou mais de um mês de tramitação e teve de ser alterada para ganhar o aval dos deputados da comissão.
Mas, crises periódicas são fabricadas internamente, a maior parte delas relacionada com as divisões internas, a influência dos filhos sobre o presidente e o seu próprio jeito de governar, classificado de "instintivo" por aqueles mais cautelosos e chamado de "com o fígado" por quem já se irritou com a sucessão de polêmicas.
"A intromissão de filhos no Palácio do Planalto é um absurdo. O Brasil é uma República e não um império", critica uma fonte com relações na alta esfera do governo. "Aonde eles querem chegar nesses ataques é um enigma. Mas eles jogam com os radicais da internet em seu favor."
Para uma outra fonte que acompanhou de perto a formação do governo, as redes sociais acabam superdimensionando os conflitos. "Eu acho que tem uma coisa muito irracional. As redes sociais superdimensionam essas tretas, conflitos, e há uma tendência de políticos e governantes populares, como Trump, que não estão preocupados em resolver o problema, querem agraváramos. Quando está emparedado pelos 'checks and balances' tradicionais, ele bota fogo na galera", avaliou.
FILHO X VICE
A última crise, que opôs o filho número 2 de Bolsonaro, Carlos (vereador no Rio de Janeiro), e o vice-presidente Hamilton Mourão --e os demais militares do governo, que se sentem atingidos pela obsessão de Carlos--, levou a oposição entre as duas alas ao limite.
Desde o último domingo, ao ser repreendido por ter postado na conta do pai no Twitter um vídeo em que Olavo de Carvalho critica os militares, que depois foi apagado, Carlos iniciou uma cruzada contra o vice-presidente. Mourão, ao ser perguntado sobre as críticas do escritor, respondeu que ele deveria se manter na função de astrólogo. Foi o que bastou para atrair a fúria do filho 02, como é chamado por Bolsonaro.
Em um dos posts, publicado no dia 22 e retuitado pelo irmão Eduardo, deputado do PSL por São Paulo, Carlos reforça seu apoio ao guru de seguidores do presidente, a quem chama de "gigantesca referência".
Carlos já escreveu mais de uma dezena de posts contra o vice, que tem evitado responder. Bolsonaro tentou colocar um ponto final nas especulações ao elogiar Mourão e dizer que Carlos "sempre estará ao seu lado", mas a confusão segue.
"A irritação é significativa. Tem tanta coisa para fazer e há quase uma semana que se fica respondendo sobre isso", disse uma das fonte.
O próprio vice-presidente, contou essa fonte, segue extremamente incomodado com os ataques e, principalmente, com a ideia vendida por Carlos de que ele trai Bolsonaro e quer ser presidente.
"Os militares estão fazendo um trabalho aí de acalmar as coisas, de conversar com Bolsonaro, mas não sei até onde isso vai", disse a fonte.
Uma outra fonte de alto escalão, próxima ao presidente, reconhece a influência excessiva de Carlos, que controla as redes sociais do presidente.
Ao analisar a situação, a fonte que acompanhou a formação do governo diz que Bolsonaro estimula a oposição entre militares e olavistas ao não desautorizar os filhos e que isso tem criado constrangimentos.
"Esse é um caso especial, há uma dificuldade do presidente aí em lidar com isso", reconheceu. "Mas vamos acalmar as coisas, não tem por que ficar respondendo."
Os ataques a Mourão, no entanto, não envolvem apenas os filhos do presidente.
Um dos vice-lideres do governo, o deputado Pastor Marco Feliciano (Podemos-SP), apresentou um pedido de impeachment de Mourão sob o argumento de que o vice conspira para derrubar Bolsonaro e assumir o comando do país. Feliciano disse em uma entrevista esta semana não ter informado o presidente sobre sua solicitação. O pedido acabou sendo rejeitado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por considerá-lo "inadmissível" e só ter o "propósito acusador".
Na manhã de quinta-feira, em café com um grupo de jornalistas, Bolsonaro procurou passar a imagem de que está tudo bem com seu vice, que também estava no encontro.
Questionado se as críticas feitas por Carlos a Mourão são justas, o presidente disse que algumas são e outras nem tanto. Bolsonaro disse então que o "casamento" entre ele e Mourão vai até 2022, no mínimo.
INCÊNDIOS
Trazidos ao governo para dar estabilidade e, segundo o próprio Bolsonaro, expertise, os militares têm demonstrado cansaço com os incêndios periódicos. E, segundo duas fontes ouvidas pela Reuters, começam a manifestar dúvidas sobre a capacidade do presidente de cumprir a missão a contento.
Segundo uma das fontes, o atual presidente é considerado por oficiais militares como uma pessoa que teve uma carreira menor na caserna. Haveria um "certo desprezo corporativo" em relação a ele, mas a cúpula militar acabou se convencendo somente a seis meses da eleição que ele seria a única alternativa viável para vencer o candidato do PT nas eleições.
"Ele foi um sindicalista dos militares, não estava qualificado para defender os grandes temas do país", disse a fonte em referência à carreira de Bolsonaro no Congresso.
Outra fonte, mostrando mais irritação com o bate-cabeça do governo, afirma que hoje há uma enorme preocupação, até porque os militares emprestaram sua credibilidade ao governo.
"Os militares estão preocupadíssimos com o futuro do Brasil", afirmou a fonte, acrescentando que há quem avalie "que Bolsonaro não reúne condições para governar o país".
No entanto, entre as fontes ouvidas pela Reuters não há sinais de uma revolta ou uma ameaça concreta de abandonar o barco, ao menos por enquanto.
No Congresso, a ordem também é baixar o tom para não fomentar ainda mais crises que podem afetar diretamente a reforma da Previdência, tema central do governo.
Dois parlamentares consultados pela Reuters não quiserem comentar para "não colocar lenha na fogueira", mas o líder do PSL no Senado, Major Olímpio (SP), afirmou que a atuação é para reduzir os ruídos entre as partes.
"O papel da gente é de bombeiro, para serenar os ânimos. Ninguém vai deixar de ser filho nem o outro de ser vice-presidente. É preciso buscar uma convivência harmônica, não tem outra forma", disse Olímpio, que desde a campanha tem buscado aparar arestas entre a família do presidente e Mourão.
Olímpio diz que é natural uma disputa de poder e de espaço, mas que os militares são um sustentáculo forte para o governo e são vistos assim pela opinião pública.
O líder do PSL rechaçou um eventual rompimento de militares com o governo Bolsonaro. "Os militares não são preocupações para ele (Bolsonaro), são soluções", afirmou.
(Reportagem adicional de Rodrigo Viga, no Rio de Janeiro)