E Se Não Houver Tanta Convicção Assim?

Publicado 31.10.2017, 09:18
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Saudações.

Voltemos ao início de 2001. Eric Dinallo era chefe do birô de proteção a investidores da Procuradoria do Estado de Nova York, e encaminhava a seu chefe – Eliot Spitzer – um memorando elencando as prioridades de seu departamento para o ano que se iniciava...

Tendo em vista a relevância de Wall Street, dispositivo específico do ordenamento jurídico americano acabava delegando àquela procuradoria poderes de investigação de diversos tipos de crime financeiro, independentemente da jurisdição. Dinallo era o xerife do mercado de capitais americano.

(Se você está assistindo à série Billions, a resposta é sim: Dinallo corresponde ao carequinha que curte levar uns tapas da mulher)

O primeiro item era investigação de abusos por parte de consultores de investimento. O segundo, investigação de analistas de firmas de investimento.

Enquanto a cabeça da lista era um quase lugar-comum, este segundo item era de certa forma surpreendente: até bem pouco tempo atrás, o trabalho do analista chamava pouquíssima atenção. Os caras da análise sempre foram os nerds do mercado, vivendo carreiras tão glamourosas quanto as das turmas do risco e do back-office. A vitrine sempre coube aos traders, à galera de sales e aos pavões do investment banking.

Mas aquilo havia mudado recentemente: os anos 1990 haviam sido de crescimento exponencial para o mercado de ações americano, com enorme fluxo de recursos para bolsa. Nesse contexto, os analistas ganharam força em relação ao restante do pessoal na formação de opinião. A independência das equipes de análise era, aliás, um poderoso argumento de venda: desbancarize seus investimentos; converse sobre investimentos com quem realmente entende – soa familiar?

A despeito disso, um enorme contingente de pequenos investidores havia perdido dinheiro. No epicentro dos acontecimentos estavam as tech stocks que invadiram o mercado americano – e viriam a protagonizar a famosa bolha das pontocom.

Era uma vez Henry Blodget. O sujeito havia feito fama, anos antes, ao ser o único a antever (?) o futuro promissor de uma então pouco conhecida empresa chamada Amazon. Alçado ao panteão dos gurus de investimento, tornou-se analista da então poderosíssima Merrill Lynch (NYSE:MER_pp).

Os caminhos de Dinallo e Blodget se cruzariam pela primeira vez por conta de uma queixa de um sujeito que alegava ter perdido mais de meio milhão de dólares por conta de uma recomendação de Blodget. Ele havia comprado ações de uma tal InfoSpace ao preço de US$122,00 e as segurou até atingirem US$10,00 (sim, dez dólares). Ao longo da tortuosa queda, contactou seu assessor de investimento diversas vezes para vendê-las, e foi sempre dissuadido com base na visão otimista de Henry sobre a companhia.

Investigações posteriores sobre as comunicações internas da Merrill Lynch evidenciaram que os questionamentos eram frequentes, e oriundos de escritórios de representantes da instituição espalhados por todo o país. Dezenas de milhares de clientes estavam insatisfeitos e preocupados com o resultado de suas aplicações, motivadas pela visão do analista.

Mas, afinal, ele acreditava no que estava escrevendo, não é mesmo?

Um e-mail de Blodget para sua assistente, Virginia Syer, porém, dava outra impressão: encaminhando outra queixa de cliente, ele prescreve: "Estou de saco cheio de receber e-mails assim. Por favor, atualize esse preço-alvo e retire essa porcaria de qualquer lista de recomendações na qual esteja."

Não muito tempo depois, a recomendação para InfoSpace foi cortada. As ações já estavam abaixo de US$15,00.

***

Era início de 2000 quando uma empresa chamada GoTo.com contratou a Merrill Lynch para levantar recursos junto a investidores europeus. Como parte do "pacote" contratado, a instituição passaria a cobrir as ações da companhia. O início de cobertura de Blodget foi publicado em janeiro de 2001, recomendando compra de longo prazo. Naquele mesmo dia, um gestor de recursos da American Express lhe enviou um e-mail perguntando: "o que há de interessante na GoTo além dos fees [comissões] de investment banking [que a Merrill estava recebendo por conta do contrato firmado]?" - "Nada", o analista respondeu.

Meses mais tarde, a GoTo.com – que pretendia realizar uma nova oferta de ações – informou à Merrill Lynch que faria a operação não com eles, mas sim com o Credit Suisse. Naquele mesmo dia, Edward McCabe, também analista do time de Blodget, lhe enviou um email informando que tinha um relatório preparado para fazer um downgrade da recomendação da GoTo. "Ótimo, ferre eles", foi a resposta.

Em outubro do mesmo ano, outro analista da equipe de Blodget, Eve Glatt, enviou para ele um artigo que sugeria que outra empresa de seu universo de cobertura, a 24/7 Media, estava enfrentando problemas tecnológicos. Dizia Glatt: "Não sei se você viu isso; nada revolucionário, mas provavelmente confirma o que você e Virg [Virginia Syer, a mesma citada logo acima] falavam a respeito outro dia". Blodget respondeu: "Que isso é um monte de merda, né?"

As ações da empresa à qual Blodget se referia como "monte de merda" eram recomendadas por ele.

Escrutínios posteriores demonstraram não somente que Blodget se referia de maneira similar a outras empresas de seu universo de cobertura – mesmo àquelas cujas ações recomendava – como, tanto pior, que tal prática era muito mais difundida na indústria do que se gostaria de se admitir.

***

E se, talvez, os analistas não acreditarem tanto assim no que dizem?

Trago más notícias: o mundo é feio, já dizia um gestor de ações que há muitos anos conheci – e que, ao que me consta, não está mais no mercado. Gostaria muito de afirmar que pertenço a uma guilda incorruptível, mas isso simplesmente não é verdade. Esta é uma indústria que está, sim, sujeita a uma ampla gama de conflitos de interesse.

E você precisa ter consciência disso antes de tomar qualquer recomendação – qualquer uma – pelo seu valor de face.

O primeiro conflito, e mais evidente, tem como epicentro os analistas que trabalham para instituições financeiras: à medida que estas mantêm outras relações com as empresas cujas ações são avaliadas – por exemplo, em crédito e investment banking–, a turma da análise volta e meia se vê pressionada a adotar este ou aquele posicionamento com o objetivo de favorecer (ou não prejudicar) tratativas do banco junto à empresa em outros negócios.

Outro fator que pode comprometer a independência da análise é o relacionamento do analista com as empresas: nem sempre os acionistas controladores – ou mesmo as equipes de Relações com Investidores – são compreensivos em relação a opiniões desabonadoras, ainda que legítimas e embasadas, e eventualmente promovem represálias de todo tipo ao profissional.

Isso pode incluir desde críticas públicas (lembro-me, por exemplo, dos comentários ferinos que Márcio Mello, então controlador da antiga HRT, fez a Paula Kovarsky – então ItaúBBA – quando esta se posicionou de forma desfavorável à companhia). Às vezes a coisa fica até mesmo mais séria, e pode levar a consequências profissionais mais graves. Procure por "Tiago Ring" e entenderá do que estou falando.

(Já passei por algo assim: certa feita disse sobre uma empresa coisas que o controlador não gostou, e a resposta veio através do braço financeiro do grupo – que era cliente da corretora para a qual eu trabalhava...)

Não menos importante, mas frequentemente subestimada, é a possibilidade de o sell side (analistas que publicam recomendações) ser "capturado" pelo buy side (analistas e gestores de fundos de investimento): o que começa como uma saudável relação de debate de ideias evolui para uma relação danosa na qual há pressões por posicionamentos contra ou a favor determinadas teses, de forma explícita ou tácita, e isso pode acabar comprometendo a análise. Conversar é sempre muito bom, mas é imperioso manter as relações extremamente republicanas: à mulher de César não basta ser honesta; é preciso parecer honesta – reputação importa, volto a dizer.

Por fim, e talvez a mais perturbadora de todas as reflexões: às vezes o analista pode ser o lobo do analista. O medo de ficar de fora, de ficar para trás, de ser deixado de lado pela falta de uma ideia original pode levar profissionais a forçarem a barra e construírem teses nas quais não creem tanto assim, pura e simplesmente pela pressão de publicar.

Em um mercado onde há enorme pressão por originalidade e volume de produção, volta e meia o pessoal fica "criativo" demais.

O caso da Merrill Lynch veio à tona há bons dezessete anos. Passado tanto tempo, gostaria de acreditar que evoluímos... mas, francamente, tenho cá minhas dúvidas.

E você, já parou para pensar nisso? E se, de repente, não existir no mundo aí fora tanta convicção quanto parece haver?

Este é um bom motivo para pensar melhor nas decisões de investimento que toma, independentemente de quem as recomenda. Incluo-me aqui, aliás: pouca coisa me incomoda tanto quanto constatar que, volta e meia, alguém compra algo que recomendei sem mal saber do que se trata.

Lembre-se: é o seu dinheiro. Seu.

E ele é muito importante para ser tratado dessa forma.

E cuide-se: tem uma guerra lá fora.

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