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O futuro da privacidade

Publicado 06.12.2024, 10:00

*Com Roger Luz

Há alguns anos, li um artigo que me impactou bastante e cujo título era “What was Privacy?”, ou “O que era Privacidade?” Nele, o autor discutia como a tecnologia estava transformando a relação das pessoas com a sua intimidade, destruindo as barreiras entre as esferas pública e privada das nossas vidas.

Basta passar alguns instantes em qualquer rede social para perceber que isso já ocorreu. Não apenas nos acostumamos com a exposição, como aprendemos a monetizá-la, “vendendo” nossos momentos íntimos online em troca de atenção e engajamento. Mais do que corroborar afirmações que já são de conhecimento público, queremos, nesse artigo, entender um pouco onde estamos, hoje, nesta questão e discutir novos elementos que surgem, devido a transformações recentes, como a disseminação da inteligência artificial.

Um outro aspecto interessante a considerar é quais os impactos de tudo isso para as organizações. Considerando que dados são hoje o commodity mais valioso do planeta, entender o que o consumidor valoriza e que tipo de dado ele está mais disposto a transacionar pode fazer toda a diferença para a identificação de oportunidades e o desenho de modelo de negócios de organizações.

Vamos começar pensando um pouco em como chegamos até aqui.

Como chegamos aqui?

A etimologia da palavra "privacidade" vem do latim "privatus", que significa "pertencer a cada indivíduo, isentar-se do grupo, isentar-se". Assim, consiste na qualidade de estar separado, retirado da vida pública, o que converge com a visão contemporânea de espaço pessoal ou vida privada inacessível a terceiros.

O conceito de privacidade sempre esteve presente em uma variedade de civilizações. Desde os tempos mais remotos, passando pela Grécia e Roma antigas, o conceito trouxe à tona a discussão entre a dicotomia entre espaço público vs. espaço privado. Para os greco-romanos, o termo era frequentemente vinculado a um sinal de egoísmo e isolamento, ou seja, uma negação da vida em comunidade. Vale ressaltar que eles tinham um senso de comunidade muito forte e, portanto, a privacidade era vista como uma ameaça ao bem comum da pólis.

Da mesma forma, na Roma antiga, a vida pública era valorizada e era tarefa dos cidadãos romanos cuidar da República (coisa pública). Vale ressaltar que os antigos gregos e romanos tinham o hábito de se banhar em público (banhos termais), frequentemente faziam suas refeições em público e não se importavam em ser observados ao caminhar pelos pátios da cidade.

Na Idade Média o conceito de privacidade começou a se desenvolver e a receber nuances de um valor incipiente de individualidade e, após a ascensão da burguesia, o significado evoluiu para uma conotação de posse, ou seja, a privacidade passa a ser vinculada aos bens, ao conforto material. Não é de se espantar que casas e cômodos comecem a se transformar com dormitórios e banheiros individuais em vez de banheiros coletivos e quartos compartilhados.

Na era moderna, principalmente com o advento da Revolução Industrial (1760) e da Revolução Francesa (1789), o exercício da individualidade começa a se expressar de forma mais forte. A sociedade moderna, produto das Grandes Revoluções, incute o valor da individualidade, e por isso, os indivíduos passam a exigir mais autonomia e direitos sobre suas vidas privadas.

O século XIX pode ser considerado o marco para a consolidação de valores e princípios sobre a vida privada, pois representa o pilar, segundo o qual Stuart Mill defende em sua obra, “Sobre a Liberdade” (1859), o direito à privacidade como um direito fundamental do indivíduo. Apesar de tudo isso, a concepção liberal de privacidade é baseada na obra de Locke, “Segundo Tratado do Governo Civil” (1689), na qual endossa os chamados “direitos inalienáveis ​​do homem” (vida, felicidade e propriedade privada). Outro aspecto que contribuiu para a ressignificação do conceito de privacidade é encontrado na publicação do artigo seminal "The Right to Privacy" desenvolvido por Warren & Brandeis (1890) no qual os autores argumentam sobre o direito de ser deixado em paz.

A era contemporânea é marcada pela eflorescência de estudos reinterpretativos sobre o campo. Diferentes visões ampliam a difícil tarefa de definir o conceito de privacidade e sua complexidade. A "privacidade contextual" explica que a privacidade é afetada pelos contextos e circunstâncias em que ocorrem a extração e o uso de informações pessoais.

Onde estamos?

Partindo do pressuposto de que a privacidade é um elemento social, indissociável da existência de indivíduos na coletividade, torna-se evidente que a cultura molda a maneira como os indivíduos entendem a realidade. Na era digital, a cultura cibernética, caracterizada pela hiperconectividade, instantaneidade e superexposição, surge como um novo paradigma que impacta significativamente a maneira como os indivíduos lidam com suas informações pessoais.

A cultura cibernética, com suas normas e valores específicos, influencia a percepção dos indivíduos sobre os riscos e ameaças à privacidade. A busca constante por validação online, a valorização da autoexpressão e a naturalização da coleta de dados pessoais contribuem para uma menor percepção de riscos e uma menor adoção de medidas de proteção à privacidade.

Gráfico, Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente

Figura 1 – Preocupações dos consumidores em relação a diferentes tipos de dados pessoais 

Os resultados de pesquisa mostrados na Figura 1 sugerem que os indivíduos atribuem um alto grau de sensibilidade a dados relacionados a seus hábitos, preferências, dados financeiros, emoções e informações demográficas em comparação com informações pessoais envolvendo imagens, geolocalização e propriedades biológicas. É impossível não se perguntar porque o tipo de privacidade com a qual as pessoas mais se preocupam é justamente aquela que tem relação com as informações que, como já foi dito aqui, nós “vendemos” habitualmente nas redes sociais em troca de atenção e, em muitos casos, dinheiro. Independentemente do tipo de tecnologia usada, os usuários se sentem menos capazes de estabelecer controle sobre suas informações, coleta e compartilhamento.

Tabela

Descrição gerada automaticamente

Figura 2 – Emoções e Categorias

Uma outra coisa que buscamos compreender foi como setores específicos provocam emoções distintas em relação à privacidade. Entre as principais descobertas, "confusão", "curiosidade", "cuidado" e "realização" surgiram como emoções cognitivas proeminentes, principalmente associadas aos setores de tecnologia e automotivo. Por exemplo, muitos comentários expressaram preocupações sobre o uso de dados por empresas de tecnologia e a percepção de falta de controle sobre as informações online.

Um sentimento contrastante também está presente, com alguns usuários descartando a privacidade como ultrapassada. Isso destaca a dicotomia em torno da privacidade: alguns indivíduos duvidam de sua eficácia, enquanto outros a veem como um princípio fundamental para o controle de informações.

E o futuro?

O conceito de privacidade está atualmente em um estado de transição com falta de consenso sobre sua definição, levando à confusão sobre seu significado e implicações. Essa situação reflete a influência da cultura de vigilância e da tecnologia na sociedade, moldando como os indivíduos conceituam e interagem com a privacidade.

Recentemente, assistimos a polêmicas que mostram que as coisas ficarão ainda mais confusas. Por exemplo, se uma imagem falsa é criada por inteligência artificial mostrando uma pessoa nua, isto constitui uma invasão à privacidade desta pessoa? Alguns dirão que não, pois a pessoa real não está ali. Por outro lado, se a imagem parece real, isso não é suficiente? Não estamos mais tratando apenas da confusa fronteira entre público e privado, mas também da fronteira entre real e irreal. Na era da pós-verdade, isso de fato importa? Os espaços da privacidade evoluirão para espaços virtuais públicos e privados, reais e inventados? Ou abriremos de vez mão destas preocupações?

O filósofo contemporâneo Byung-Chul Han diz que o ser humano precisa de espaços privados, de sombras. Não somos feitos para a exposição completa e derreteríamos diante de um holofote tão permanente e poderoso. Então, fica a pergunta: quais serão esses espaços íntimos do futuro? O que nos restará de privado?

Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

*Doutor pelo COPPEAD/UFRJ

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