Esta semana voltei a assistir um clássico do suspense de Alfred Hitchcock. Psicose, de 1960. As perspectivas das câmeras e os contrastes da fotografia em preto e branco ainda impressionam. Bem menos impressionante tornou-se o valor nominal apresentado na segunda cena. Responsáveis por desencadear apenas a tensão inicial do filme, aqueles quarenta mil dólares, seriam pagos por um imóvel residencial para a filha de um esnobe ricaço.
O valor nominal de algo perde-se na linha do tempo. Só ao considerar a evolução dos preços na economia poderemos dimensionar seu valor real atual. Corrigidos pela inflação do custo de vida, aqueles US$ 40.000 dólares equivaleriam hoje a US$ 347.000. Mais interessante ainda seria atualizá-los pelo próprio índice de preços das residências nos Estados Unidos. Infelizmente o Case-Shiller US National Home Price Index só é disponível de 1987 para cá. Sendo assim, na linha verde abaixo, eu corrigi o valor desse ano em diante pelo índice específico dos imóveis residenciais. Por este parâmetro, neste mês de dezembro de 2019, seu valor real estaria mais próximo dos US$ 508.000. Mais de dois milhões de reais. Agora sim, aqueles dólares voltam a impressionar!
Imóveis são frequentemente vistos como um produto de investimento, ativo financeiro ou reserva de valor. São comuns histórias de pessoas que ganharam dinheiro com eles. Um dito popular afirma até que "quem compra terra não erra."
Uma das razões para a valorização dos imóveis foi a antiga taxa de fertilidade, muito acima da taxa de reposição da população! Fui testemunha disso na minha infância. Famílias numerosas não eram apenas um fenômeno rural. Cresci em Campinas, a maior cidade do interior paulista. Nossos vizinhos, o simpaticíssimo Dr. Mangabeira e o Dr. Piazon (que não conheci tão bem), eram ambos médicos. Conheciam o ciclo reprodutivo feminino. O tamanho de suas famílias não seria mero fruto do acaso, mesmo antes da pilula anticoncepcional surgir na década de 1960. No entanto, coincidentemente, ambos tiveram oito filhos! E se recuarmos mais no passado, minha avó, por exemplo, filha de um professor, cresceu numa casa com mais onze irmãos.
Para ilustrar os efeitos da taxa de fertilidade na valorização imobiliária, imaginemos um universo simulado, com só duas casas e populado por apenas duas famílias. A família Silva, de 8 filhos, e a família Oliveira, com 9 filhas. Os meninos Silva crescem e se apaixonam pelas meninas Oliveira. Embora uma das garotas permaneça solteira e vivendo com os pais, outras 8 famílias são formadas. Quem casa quer casa! Logo, surge uma demanda real por mais oito residências num universo que antes só tinha duas. De um par de casas, saltamos para uma dezena delas em apenas uma geração de filhos. A valorização é óbvia enquanto a demanda por habitações superar a oferta no estoque de imóveis!
Extrapole isso por mais algumas gerações. Imagine porém, uma quantidade menor de filhos a cada nova geração. Lembre-se também que era comum um casal ter seus primeiros filhos ainda aos vinte e poucos anos de idade. Hoje muitos "jovens" só têm um filho aos trinta e tantos anos de idade. O número de filhos diminui e o espaçamento entre as gerações aumenta. Logo, a dinâmica de expectativas deve ser diferente para o mercado imobiliário.
O gráfico abaixo mostra a evolução da taxa de fertilidade da mulher brasileira a partir da década de 1960, quando a pílula anticoncepcional passou a ser comercializada. A taxa de reposição da população é mencionada na literatura como sendo de 2,1 filhos por mulher. "Mulher" aqui não se restringe apenas às mães, mas representa todas as mulheres acima de certa idade, independente do seu estado civil, das suas opções de vida ou da sua saúde reprodutiva para gerar ou não filhos. No Brasil, já estamos abaixo da taxa de reposição da população desde 2003! Quando eu nasci, a taxa de fertilidade era de 5,91 filhos por mulher brasileira. O último registro obtido foi de 1,739 em 2017.
O Japão oferece um exemplo radical dessa mudança de paradigma. Sua taxa de fertilidade agonizava havia muitos anos, por conta da segunda guerra mundial e das duas bombas atômicas ali lançadas pelos americanos. Observe no próximo gráfico que em 1966, 21 anos depois dos devastadores ataques nucleares, subitamente faltaram bebês. Embora houvesse alguma recuperação entre 1968 e 1973, a taxa de fertilidade japonesa sucumbiu irrecuperavelmente abaixo de 2,1 filhos por mulher a partir de 1974.
Sua população continuou crescendo, não graças à fertilidade, mas devido à longevidade japonesa, que é a maior do mundo. Só em 2010 o Japão atingiu sua população máxima (de 128,07 milhões), para depois apresentar uma leve retração populacional. No entanto, o preço médio dos imóveis residenciais japoneses atingiu seu auge no primeiro trimestre de 1991. Dezessete anos após a perda definitiva da taxa de reposição da população e vinte anos antes da retração populacional. Segundo os dados do Banco Internacional de Compensações (o banco central dos bancos centrais), ajustados pela inflação para representar um poder aquisitivo constante, o valor real dos imóveis japoneses está hoje em torno de apenas 57,3% do alcançado na virada de 1990 para 1991.
Japão mostrou que quem compra terra também erra!
O gráfico seguinte mostra a expansão da base monetária japonesa, que se intensificou muito nos últimos sete anos. Mas quase 30 anos depois da bolha imobiliária, nem toda a fértil emissão de ienes pelo Banco Central do Japão foi capaz de reflacionar o preço dos imóveis. A base monetária japonesa subiu 1.300% desde 1990, mas ainda assim o valor médio de mercado das residências caiu 42,7%!
Contudo, não é só a demanda pela "casa própria" que move esse mercado. A percepção de que imóveis são um bom investimento faz com que muitos poupadores especulem na compra. Distorções econômicas também acontecem constantemente. Elas podem ser induzidas por campanhas de marketing e por políticas do governo. E de forma importante, pelas decisões do Banco Central em relação a taxa básica de juros, depósitos compulsórios e base monetária. Esses fatores influenciam na especulação imobiliária. Especuladores não compram para a própria habitação, compram só a expectativa de valorização dos imóveis ou de rendimentos com aluguéis.
Para o governo é interessante que pessoas simples e menos educadas possam trabalhar na construção civil. Ela emprega pessoas que, sem educação pública de melhor qualidade para o mercado de trabalho, poderiam gerar insatisfação eleitoral, ou preocupações de segurança pública e despesas para o estado. Além disso, a construção e a comercialização de imóveis geram receitas de impostos para os governos municipais, estaduais e federal.
O governo petista estimulou excessivamente o setor imobiliário. Também o Banco Central que, a partir de agosto de 2011, quando a taxa SELIC alcançara 12,50% a.a., passou a descer os juros. Exagerou, baixando-os a pauladas!
Em outubro de 2012, mesmo sem saber que a SELIC (já a 7,25% a.a.) não seria mais reduzida, eu me pronunciei avesso aos imóveis no Brasil. Comentei com várias pessoas. Algumas delas se opuseram à minha opinião. Dois experientes profissionais do mercado financeiro (muito estimados e admirados por mim) apresentaram o argumento de que o Brasil ainda tinha uma enorme carência de casas próprias. Outro contraponto, leigo e mais próximo, era de que o mundo não aumentaria enquanto a população ainda cresceria. A este último, o Japão responde. Já a primeira discórdia me causou preocupação, pois veio de pessoas do mercado financeiro, bem mais credenciadas do que eu. Será que eu estava enganado? Ou eles é que subestimavam a especulação que se acotovelara na euforia por imóveis? A multidão à procura de "casa própria" ficava cada vez mais na retaguarda, sem poder aquisitivo para comprá-la. Eram hordas especulativas que marchavam na vanguarda, entoando o brado inflacionário dos imóveis residenciais.
No início de 2013, depois de muitas críticas domésticas e internacionais, o COPOM voltou a subir os juros brasileiros. Os preços dos imóveis só atingiriam seu pico no quarto trimestre de 2013, cerca de um ano depois do meu alerta e dez meses depois da retomada de alta da SELIC. A partir dali, o mercado imobiliário estagnou e os imóveis se desvalorizariam! No princípio, só em termos reais, graças à inflação descontrolada de Dilma Rousseff. Mas depois, ao cair a ficha de muitos proprietários relutantes, os preços nominais também começaram a baixar.
O gráfico a seguir mostra o índice de variação real dos imóveis residenciais no Brasil. Ajustados pela inflação do custo de vida. Os dados disponíveis pelo Banco Internacional de Compensações vão de Janeiro/2001 a Junho/2019. Nesse histórico, são flagrantes 2 períodos em que os imóveis residenciais representaram perda de poder aquisitivo para seus proprietários. O primeiro, não sabemos ao certo quando se iniciou, mas durou no mínimo 5 anos. Indo, pelo menos, de 2001 até 2006, mas podendo ser mais extenso que isso. O segundo período de evidente perda de poder aquisitivo se iniciou no quarto trimestre de 2013 (há 6 anos) e ainda se arrasta até hoje.
A euforia imobiliária brasileira entre 2008 e 2013 assusta não apenas pela rápida ascensão dos preços, mas principalmente por se iniciar logo após o estouro da bolha imobiliária nos EUA. O Brasil tinha um exemplo de delírio ainda fresquinho! No entanto, zombeteiros que somos, demos de ombros ao agourento preâmbulo estrangeiro. Lançamo-nos de cabeça a semelhante ilusionismo!
O ano de 2006 registrou o lançamento de ações de várias empresas ligadas ao setor imobiliário: Rossi Residencial (14/fev/2006); Gafisa (16/fev/2006); Company (1/mar/2006); Duratex (11/abr/2006); Cyrela (20/jul/2006); LPS Brasil (15/dez/2006). (confira)
No início de 2006, antes de apresentar meu pedido de reservas de ações da Rossi (SA:RSID3) Residencial , Gafisa (SA:GFSA3) e Company, lembro-me de ter escrito em um email, copiado para vários amigos, colegas e parentes: "Same investment, different country!" Escrevi em inglês justamente por referir-me ao mercado imobiliário dos EUA, e alguma chance de coisa semelhante acontecer no Brasil. Mas sem sequer pensar muito a esse respeito. Aliás, se errei nesse comentário fortuito, foi por eu mesmo não acreditar que seria tão premonitório!
Em 2006, eu só sabia da euforia ocorrida nos EUA. Não tinha ainda qualquer noção do tamanho da irresponsabilidade e do malicioso golpe que o sistema financeiro protagonizou contra o mundo no escândalo do subprime. Felizmente, a bolha brasileira que se seguiu foi menos virulenta. Restringiu-se a esse mercado e não contaminou produtos de renda-fixa nas mãos de investidores mais cautelosos.
Mas, mesmo se bem menos contagiosa, salta aos olhos o fato de que a euforia imobiliária brasileira alcançou em apenas 9 anos a mesma valorização que os EUA registrou em 36 anos! Os especuladores brasileiros foram quatro vezes mais rápidos... Ou quatro vezes mais ingênuos!
Nos EUA, em 2012, os juros reais ainda mais negativos voltavam a turbinar o mercado de imóveis. Quando os juros da renda fixa punem os poupadores mais cautelosos, através da perda de poder aquisitivo, eles tendem a estimular os investimentos mais arriscados.
No Brasil, com a renda fixa oferecendo uma rentabilidade tão deprimida ou deprimente, talvez a especulação imobiliária encontre aqui também um novo fôlego.
Há um mês, alguns títulos de renda fixa do Tesouro Nacional começaram a oferecer uma rentabilidade real negativa, ou seja, pagando juros abaixo da inflação!
Diante da expectativa de prejuízos na renda fixa e alguma chance de lucro em especulações mais arriscadas, a segunda hipótese acaba por atrair poupadores.
Entre o fogo e a frigideira, não estão fáceis as decisões de um poupador!
Com retornos baixíssimos da renda fixa no mundo todo, há um empurrão global para a crescente tomada de riscos nos investimentos. As margens de manobra estão tão espremidas, que o nível da expertise necessária para operar nos mercados está escalando rapidamente. O assustador endividamento corporativo no mundo todo representa um risco enorme. Os unicórnios corporativos internacionais, como Uber, NetFlix, Lyft e WeWork, não geram lucros no modelo atual de negócios. Só sobrevivem graças ao acúmulo de dívidas e rolagens ad aeternum.
Mas o mercado continua receptivo e absorvendo o risco. As bolsas seguem batendo recordes após recordes. Fundos de pensões PRECISAM comprar risco! Caso contrário, não há alternativas para se rentabilizarem e pagarem as pensões dos seus pensionistas.
A situação da economia mundial é bizarra! Na Europa, um investimento equivalente ao valor de um imóvel de médio ou alto padrão não gera retorno algum numa aplicação bancária. Alguns então fogem para a especulação com ações ou ETFs. Mas muitos preferem especular com imóveis, que permanecem desocupados ou em obras para serem vendidos novamente (para outros especuladores)! Nesta especulativa dança das cadeiras, a população que realmente precisa de habitação própria fica de fora. Chupando o dedo! Não tem qualquer poder aquisitivo para competir pelos imóveis negociados. Nem sequer encontram habitações para alugar. Grande parte dos especuladores simplesmente não quer alugar - quer apenas revender mais caro e voltar a especular com o ganho de capital. Não há alternativas. É especular ou estacionar o dinheiro no banco. E os bancos europeus podem estar mais frágeis do que parecem, na eventualidade de uma nova dor de barriga do sistema financeiro!
O risco na economia mundial nunca foi tão elevado! Nem tão mal precificado nos mercados financeiros. Dar tempo ao tempo não parece solução alguma. As políticas monetárias dos Bancos Centrais, tentando evitar o descalabro, só adiaram-no ao custo de aumentar sua potencial malignidade.
Num beco sem saída, não seria de estranhar se os negócios com imóveis ressuscitassem também no Brasil. Muitos poupadores conservadores ainda vêem a natureza tangível dos imóveis como indicativo de maior segurança. A própria Bovespa parece sugerir algo interessante para este setor. Dentre todos os 13 índices, amplos e setoriais, monitorados na Bolsa brasileira, justamento o Índice Imobiliário (IMOB) foi que mostrou melhor desempenho neste ano. O IMOB se valorizou mais de 60% em 2019. Uma bela proeza! Ao regredirmos mais ainda, vemos que a valorização do índice de ações deste setor imobiliário já subiu 250% desde o início de 2016. Se o movimento das ações na bolsa antecipa realmente o desempenho de suas empresas na economia real, essa performance deixa no ar uma promessa ainda não cumprida.
As construtoras estão aumentando muito a quantidade de novos lançamentos . A questão é que os preços dos imóveis, mesmo depois dos últimos 6 anos de desvalorização, ainda permanecem proibitivos para a maioria daqueles que buscam a casa própria. Mas, com a renda fixa já tão anêmica, o apetite por risco está crescendo no Brasil. O Ibovespa aos 115.000 pontos é prova disso. Os lançamentos de imóveis novos e ainda caros mostra que houve obsessivas apostas numa retomada das compras especulativas. E os juros básicos brasileiros nunca representaram um incentivo tão grande para novos delírios.
A dificuldade em determinar o que é ou não real é uma perturbação da mente. Ao alcançar um grau patológico, a psiquiatria a define como psicose. Os sintomas mais comuns são convicções falsas, delírios e alucinações. Por extensão, o termo também é empregado para designar um estado de espírito (individual ou coletivo) marcado por ideias obsessivas.
Uma citação conhecida de Warren Buffett faz referência a isso:
"Mr. Market is kind of a drunken psycho. Some days he gets very enthused, some days he gets very depressed. And when he get really enthused you sell to him, and if he gets depressed, you buy from him. There’s no moral taint attached to that."
— Warren Buffett
Numa tradução livre: "O Sr. Mercado é meio ébrio e psicótico. Nalguns dias ele está entusiasmado demais, noutros fica muito deprimido. E quando ele está todo entusiasmado, você vende para ele. E, no caso dele ficar muito deprimido, você compra dele. Não há qualquer imoralidade nisso."
Os investidores estrangeiros parecem estar bastante atentos às palavras do sábio de Omaha. Só em 2019, já acumulam um saldo de R$ 42 Bilhões em vendas de ações nos pregões da Bovespa.
Por falar em Buffett, quem está observando o nível do seu indicador? Nas palavras dele, a razão entre o valor da capitalização total do mercado sobre o PIB é "probably the best single measure of where valuations stand at any given moment." O recorde anterior foi registrado no auge da bolha da internet, em janeiro de 2000.
Uma coisa é certa: 'Psicose' de Alfred Hitchcock perde em suspense para a psicose destes mercados!
Copyright © Sebastião Buck Tocalino
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