Por Luciano Costa
SÃO PAULO (Reuters) - Uma crise de confiança vista no mercado de energia após algumas comercializadoras de eletricidade revelarem dificuldades para honrar compromissos já gera efeitos colaterais, com empresas impactadas pelos calotes buscando até saídas legais para rescindir contratos, disseram à Reuters uma empresa e fontes do setor.
A tensão teve início com problemas da Vega Energy, que vendeu energia a descoberto e ficou com exposição financeira negativa em cerca de 200 milhões de reais para 2019 após um salto dos preços neste ano, desencadeado por chuvas fracas na região das hidrelétricas, principal fonte de geração do país.
Como as regras do setor estabelecem que o risco das operações é bilateral, comercializadoras que haviam negociado elevado volume com a Vega se viram sem esperanças de receber a energia e precisaram comprar novos contratos no mercado para entregar a clientes com os quais haviam se comprometido.
Em um primeiro momento, empresas como Linkx Energia e FDR Energia abriram renegociações com alguns compradores, mas agora já há comercializadoras alegando descumprimento de cláusulas pelos clientes para cancelar contratos e se livrar de obrigações de entrega de eletricidade para fevereiro.
"Várias empresas estão buscando detalhes contratuais para renegociação ou distrato nesse momento de turbulência no mercado", disse à Reuters uma fonte com conhecimento do assunto, sob a condição de anonimato devido à sensibilidade do tema.
A Boven Comercializadora, empresa que tinha mais energia a receber da Vega, disse que desde o início da crise tomou diversos "calotes" e com isso mudou suas práticas, adotando postura mais dura com clientes e cancelando alguns contratos, ainda que pagando multas.
"Não temos problema de caixa, estamos com dificuldade de comprar energia... recentemente fomos desabilitados de leilões de grandes geradores, que alegaram risco momentâneo, exclusivamente pelas notícias divulgadas referentes aos calotes milionários que a Boven tomou", disse o CEO da empresa, Otto Resende Vilela.
A Boven tinha cerca de 50 milhões de reais em energia a receber da Vega, contra cerca de 9 milhões da FDR e 4 milhões da Linx (SA:LINX3), segundo uma lista que circulou pelo setor e cujos valores foram confirmados pela Reuters junto a diversas fontes.
"Não inadimplimos e não vamos inadimplir nenhum contrato, entretanto estamos sendo mais rigorosos com as exigências contratuais... (o movimento) está associado a uma nova política de risco da Boven, estamos implementando regras rígidas de compliance", acrescentou Vilela.
O executivo estimou que as rescisões não representam "nem 3 por cento" dos 250 contratos de longo prazo que a empresa possui junto a consumidores livres de energia.
No chamado mercado livre de energia, grandes clientes, como indústrias, podem comprar o suprimento de geradores ou comercializadoras, ao invés de serem atendidos por uma distribuidora, mas ficam sujeitos aos riscos dos negócios.
Segundo Vilela, a própria Boven teve prejuízo acima de 75 milhões de reais devido aos calotes no mercado --ele disse que oito empresas descumpriram contratos com a comercializadora.
O executivo explicou que a Boven rescindiu alguns contratos por inadimplência dos clientes com uma cláusula de aporte de garantias. Um outro acordo, com a Sabesp (SA:SBSP3), "ainda não está definido", mas segundo ele a Boven "fará imediatamente o pagamento da multa contratual" caso opte pela rescisão.
Procurada, a Sabesp não comentou de imediato.
FORA DO PADRÃO
Os cancelamentos, no entanto, não são padrão no setor --uma segunda fonte do mercado com conhecimento das operações disse à Reuters que as comercializadoras costumam ser "complacentes" com a cláusula de garantias porque os contratos em geral são registrados para os clientes apenas após o efetivo pagamento.
"Em tese, está certo, mas essa não é uma prática. Todo mundo é complacente... eles estão se respaldando em legalidades, na letra do contrato. Mas principalmente com consumidores livres, porque se uma empresa faz isso com outras comercializadoras ela não consegue mais fazer negócio com ninguém", afirmou a fonte.
"A Boven levou calote da Vega e outras e agora está fazendo de tudo para se recuperar", afirmou uma terceira fonte do mercado, para quem o padrão seria a empresa avisar clientes com antecedência sobre as garantias ao invés de rescindir acordos.
REGULADOR ATENTO
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) acompanha os desdobramentos da situação das comercializadoras e avalia como reduzir riscos, disse nesta quinta-feira o diretor Rodrigo Limp, nos bastidores de evento do regulador em São Paulo.
"Temos observado que algumas comercializadoras estão operando com uma alavancagem que gera uma insegurança no mercado, uma alavancagem excessiva", afirmou.
Segundo ele, a agência pretende alterar regras para que os contratos de energia registrados na CCEE tenham liquidação financeira das posições em base semanal, e não mais mensal, o que reduz valores e riscos envolvidos em cada acerto de contas.
A Aneel também estuda aumentar exigências para a abertura de comercializadoras --hoje elas precisam de capital social mínimo de 1 milhão de reais.
Limp afirmou que Aneel e CCEE vão agora avaliar se os prazos de liquidação poderiam ser reduzidos já em 2020, uma vez que a medida depende de ajustes em sistemas computacionais.