É inegável que ao longo dos últimos 40 anos o mundo inteiro se beneficiou da economia americana e isto sim, levou a uma série de distorções econômicas e transferências de riqueza, nem todas devidas ou justas. A China até hoje trabalha com seu câmbio depreciado para facilitar exportação. O mundo reclama disso, mas os chineses nunca mudaram a postura deles. As tarifas cobradas pelos Estados Unidos de diversos países sempre foram muito mais baixas que no resto do mundo. Não é à toa que o maior produtor de tênis do mundo hoje é o Vietnã (quem poderia imaginar!) e como este, existem centenas de exemplos.
A respeito do pacote tarifário anunciado por Donald Trump em 2 de abril, é preciso ir além da narrativa simplista de vilões e heróis, ou da dicotomia entre o bem e o mal. O que está em jogo são interesses estratégicos, vieses históricos e decisões que, inevitavelmente, irão redesenhar a ordem mundial. Talvez, até mesmo para melhor. É possível que estejamos assistindo ao crepúsculo da hegemonia norte-americana, com estas tarifas abrindo caminho para que nações asiáticas ganhem protagonismo em diversos mercados globais — incluindo o brasileiro — promovendo uma deflação natural em vários setores, como já observamos na indústria automobilística. A China, por sua vez, vem avançando de forma contundente na manufatura, área por décadas dominada pela escala e tecnologia alemãs, e, mais uma vez, imprimindo uma dinâmica deflacionária ao mercado. Eis aí a beleza do movimento: a transformação abre espaço para novas soluções, gera riqueza, reconfigura equilíbrios e traz à tona inovações que antes pareciam inatingíveis.
Aliás, muito antes da imposição do tarifaço, o mundo já atravessava um processo de desinflação generalizada, ao passo que a China consolidava, de forma silenciosa porém consistente, sua liderança industrial e tecnológica. O país vem ampliando de maneira expressiva seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), que saltaram de 0,5% do PIB na década de 1990 para mais de 2,63% entre 2014 e 2023. As projeções indicam que, em aproximadamente uma década, a China poderá assumir o domínio da indústria global.
Isso porque a China destina uma parcela significativa de seu PIB para investimentos em capital fixo, que inclui infraestrutura, construção civil, máquinas e equipamentos. Em 2023, esse investimento representou 41,1% do PIB. A composição do PIB da China em 2023, segundo dados do Escritório Nacional de Estatísticas (NBS), foi Consumo das famílias (39,19% do PIB), Consumo do governo (16,53% do PIB), Investimento em capital fixo ( 41,40% do PIB), Variação de estoques (0,74% do PIB) e Exportações líquidas (2,13% do PIB).
As ações da China exercem efeitos deflacionários sobre o mercado global, resultado de uma estratégia clara de consolidação como principal fornecedora mundial, especialmente nos segmentos de tecnologia e bens industriais. Em termos concretos, a economia chinesa configura-se como uma verdadeira máquina de absorver concorrentes.
Um exemplo emblemático é sua liderança no mercado global de veículos elétricos: em 2024, o país comercializou 10 milhões de unidades, o que corresponde a aproximadamente 60% das vendas mundiais. As projeções para 2025 apontam para um incremento desse volume, estimando-se que as vendas alcancem 12 milhões de unidades, apesar das tarifas impostas por Estados Unidos e Europa com o intuito de proteger suas respectivas indústrias automotivas. Em resposta a tais restrições, os fabricantes chineses têm intensificado seus investimentos em unidades produtivas no exterior — incluindo países como Espanha, Alemanha, Brasil e México — como forma de contornar essas barreiras comerciais.
O avanço chinês neste novo mercado tem impacto direto em outro, bem tradicional, que é o do petróleo. Com 60% das vendas de carros na China sendo de modelos elétricos ou híbridos, a demanda por combustíveis fósseis tende a cair. Projeta-se uma redução de 4% a 5% ao ano no consumo de gasolina até 2030.
Em 2024, o consumo de depreciação do petróleo na China foi de 8,1 milhões de barris por dia, 200 mil a menos que em 2021. A redução da produção global sem aumento significativo de preço sugere que a demanda pode ter atingido o pico. Para os veículos elétricos, a China segue a estratégia definida no setor de aço: conquistar participação de mercado global, mesmo com margens de lucro mais baixas. Não devemos, no entanto, nos atermos apenas aos países que disputam a liderança global. Há outros “atores” que merecem atenção pelo que estão fazendo para ajustar suas contas e voltar a prosperar.
Aqui na América do Sul, vale dar um destaque para a Argentina. Apesar das medidas impopulares, Javier Milei mantém altos índices de aprovação. A população reconhece que a hiperinflação é resultado de políticas passadas, como impressão descontrolada de moeda e controle artificial de preços e câmbio. Caso a popularidade se mantenha, há potencial para uma reconfiguração do Congresso nas próximas eleições, fortalecendo a agenda de reformas econômicas.
Obviamente, não há como comparar a economia de nosso vizinho com a do país asiático. Mas dá para considerarmos as estratégias de ambos. Se a da China visa o domínio da economia global e seu posicionamento como novo império, a da Argentina tem como propósito acabar de vez com uma crise que dura décadas e colocar o país novamente nos trilhos do desenvolvimento. Vale lembrar, que nenhuma nação da América do Sul experimentou a mesma pujança que os argentinos experimentaram na primeira metade do século 20 e que acabou por conta de políticas econômicas equivocadas e muita corrupção ao longo das últimas décadas.
A Argentina detém vastas reservas de gás e petróleo, incluindo algumas das maiores jazidas de xisto do mundo. A exploração desses recursos constitui um dos pilares centrais da estratégia do presidente Javier Milei para atrair investimentos e impulsionar o crescimento econômico do país. Com o respaldo do eleitorado e o apoio de um Congresso mais alinhado, nossos vizinhos argentinos estão prestes a se tornar um exemplo para toda a América Latina de como conduzir as reformas necessárias ao progresso. Ademais, à semelhança do Brasil, a Argentina foi contemplada pelo governo dos Estados Unidos com uma tarifa de apenas 10%, a menor prevista no pacote de medidas, o que representa um estímulo significativo à competitividade de seu setor exportador em relação a diversos concorrentes globais. Desde que mantenha o rumo das reformas, não restam dúvidas de que a Argentina poderá colher os frutos da prosperidade.