Estado não é empresa, mas ainda assim deve ser fiscalmente responsável. Responsabilidade fiscal é o eterno tabu brasileiro. Enquanto nas contas domiciliares o mantra “gastar consistentemente acima dos ganhos” é sabidamente um erro, quando se trata do governo há a ilusão de que esse limite não existe, uma vez que é sabido que suas condições de financiamento são diferentes. Admitamos: essas condições são de fato distintas, mas a maior disparidade entre uma empresa e o Estado é o que ambos devem gerar no final.
Após uma desilusão considerável com movimentos que pregam a expansão da atuação estatal, em 2017 observamos o crescimento de uma corrente nova de pensamento que foca na eficiência do Estado, usando como exemplo o setor privado. Todos queremos que o governo seja mais eficiente em seus gastos e que resultados práticos sejam apresentados (principalmente porque um terço de tudo que é produzido vira arrecadação), mas, será que estamos observando sob a ótica correta?
Vamos por partes: o objetivo de uma empresa privada é maximizar os resultados possíveis para todos os seus envolvidos dada a alocação escassa de capital e, no fim das contas, permitir que aquele que esteja colocando seu patrimônio na jogada (o capitalista) consiga obter resultados positivos - ou seja, lucro. Lucro, aqui, seria uma medida monetária que demonstra que o investimento compensou, porque pagou o risco ou no mínimo o custo de oportunidade.
No caso da iniciativa pública, a ideia é um pouco diferente. O que se espera de uma boa gestão pública é a geração de bem-estar, não necessariamente de lucro. O Estado atua como um alocador de recursos (e nisso se aproxima da iniciativa privada), porém, o objetivo final é o de estar presente em áreas em que, ao menos teoricamente, o mercado não seria capaz de alcançar e/ou prover serviços adequadamente justamente porque não teria o lucro como resultado. Alocar recursos e não esperar lucro como retorno: seria essa uma inconsistência? Na verdade, não.
A atuação pública envolve o direcionamento de recursos arrecadados pela população no oferecimento de serviços, além de diversas outras funções. Quanto mais eficientemente isso é realizado (e, aqui sim, olhando a ótica puramente monetária), encontramos que menos precisará ser alocado para aquela área. Mas, na prática, isso difere da ideia de que “uma área tem que dar lucro para gerar bem-estar social”. O retorno da aplicação dos impostos não é ligado ao retorno do dinheiro diretamente (como em um projeto de investimento), mas ao serviço prestado e às potencialidades que isso vem a gerar em termos sociais.
Possivelmente até agora você leitor tenha achado inconsistente a argumentação que diferencia a iniciativa pública da privada, mas vamos para três exemplos rápidos de como a ótica pública é distinta (e como isso é absolutamente compreensível):
- Saúde: um hospital público tem como objetivo atender a todos que estiverem com problemas. É eficiente e desejável que use os recursos de modo a evitar desperdícios, mas gera menos bem-estar do que poderia se decidir que tem como prioridade gerar um caixa positivo a despeito da falta de suprimentos básicos. É melhor ter o hospital perto da sua casa com o “caixa zerado” (não no vermelho, mas utilizando todo o recurso financeiro disponível) e prestando os serviços ou “com um excelente resultado financeiro” e deixando a desejar em aspectos básicos como gaze e linha para sutura?
- Educação: uma escola pública busca oferecer uma base educacional aos que não conseguem pagar pelo ensino privado. É interessante que aloque os recursos a ela encaminhados da melhor maneira possível, mas não faz sentido atrasar a compra de giz de lousa e materiais esportivos simplesmente porque “deveria gerar um resultado financeiro positivo”;
- Iluminação pública: o imposto que é direcionado para esta área vai para uma atuação pública de manutenção desta atividade que, por gerar um benefício público e de inimaginável exclusão, dificilmente seria oferecido por alguma empresa (novamente, porque não gera lucro).
Aqui, chegamos a um ponto importante. Se a atuação pública não deve objetivar o lucro e sim a geração de bem-estar social, temos então que as prioridades de uma boa parte da atuação pública brasileira poderia ser revista. Isso porque o retorno dos impostos em termos de bem-estar está entre os piores do mundo, a despeito a existência de mais de uma centena de empresas estatais e do já citado um terço da produção virando arrecadação. Devemos nos perguntar mais sobre a atuação do Estado no seguinte sentido: essa área em que ele atua foca na geração de bem-estar ou de benefícios privados (leia-se: na manutenção de privilégios do funcionalismo público e/ou de poder de barganha de políticos que estejam nos bastidores dessas empresas)?
Mais diretamente: faz sentido que, ao invés de o governo se preocupar com o oferecimento de serviços públicos como a saúde, a educação e a segurança, este decida focar sua atenção em gerir empresas - estas sim, que, como vimos, devem atuar de modo a dar lucro? Não seria mais eficaz se o governo mantivesse o foco na oferta de serviços, e não na manutenção de empresas (leia-se: o imenso conjunto de estatais que temos por aqui)?
Não podemos cair no conto do “deixemos tudo com a iniciativa privada, porque os mercados vão regular qualquer coisa”. Infelizmente, trata-se de solução rápida, fácil e ineficaz tal qual imaginar que concentrar tudo na mão do Estado faria algum bem real de longo prazo. Assim como o governo, o mercado também apresenta falhas em sua atuação e, ao menos em teoria, a atuação do Estado deveria se concentrar em pontos que o mercado falha assim como o mercado deveria se dar em meios que o Estado não faria tão bem.
A discussão sobre os serviços que o Estado deveria ofertar e aqueles que deveria deixar para a iniciativa privada é bastante ampla, mas é preciso pensar em como as duas atuações, pública e privada, se diferem. Deixando de lado essa importante diferenciação, cairemos em um futuro novamente de “o Estado é quem sabe e deveria fazer tudo” ou “se uma empresa não fizer, deixa o problema seguir, já que não dá lucro”.
Em anos eleitorais essa diferenciação importa ainda mais, porque os representantes que serão escolhidos lidarão diretamente com a alocação de recursos públicos e com a discussão sobre onde o Estado deverá ou não atuar (seja provendo o serviço ou regulando-o). Soluções extremas de “presença total” ou “ausência total” da iniciativa pública são danosas - reitera-se: porque as duas apresentam falhas em sua atuação.
Sérgio Lazzarini levantou recentemente uma discussão interessante sobre o assunto: privatização deve ser irrestrita de tudo que é público? Será que não vale a pena, antes disso, analisar o que precisaria de atenção? No caso da Petrobrás, por exemplo, como cita o autor: se formos olhar apenas para a comercialização de petróleo e derivados, temos a iniciativa privada como plenamente capaz de executar tal tarefa; porém, em se tratando do conhecimento específico de exploração em alto risco, como este representa um diferencial tecnológico (às custas de vultosos investimentos públicos em pesquisa), seria tolo simplesmente dizer “não valeu a pena, podemos vender também, não fará diferença”.
O foco de um programa de privatizações passa sim pela melhoria no oferecimento dos bens públicos e não puramente pela geração de caixa. Vivemos hoje a conta de anos de displicência com o gasto público, a União apresenta déficits em seguida, alguns estados estão quebrados e outros logo ficarão assim. Segundo uma consultoria estrangeira, temos atualmente 168 estatais que, vendidas integralmente, poderiam gerar mais de R$400 bilhões de caixa. Vender tudo sem analisar é uma boa ideia? Focando puramente na geração de caixa, sim; imaginando que alguns ganhos de produtividade podem ir embora, não.
Não pense o leitor que este que escreve não seja a favor de privatizações. Muito pelo contrário: acredito que muitas empresas públicas (mesmo as mais apontadas como “patrimônio do povo” e “orgulho nacional”) servem mais para um marketing político e demagogo do que para o oferecimento de bons serviços e, por isso, deveriam sim ser privatizadas. Isso não é contraditório com o fato de que, antes de colocar à venda, o governo saiba diferenciar o que é ou não realmente estratégico.
“Privatização depende do que é estratégico? Já ouvi isso num discurso de diversos políticos que na verdade desejam que nenhuma privatização ocorra…”
Estratégico, aqui, é em termos econômicos, o que já foi pago com recurso público e representa diferencial em produtividade. Absolutamente não se relaciona com aspectos legais sem sentido sentido econômico. Não é o “tá na constituição, então tem que ter, não precisa discutir”, mas o “isso aí não faz sentido vender porque gera real benefício mesmo sendo público”.
Independente da onda política que o país esteja vivendo, liberalizante ou estatizante, a população e os governantes precisam ter em mente que a atuação do Estado deve ser focada na eficiência de resultados em termos de bem-estar público, justamente porque toda a sociedade participa de seu orçamento.
Ter o pensamento de que as coisas apenas terão avanço se o Estado tudo fizer ou que o país só funcionará se tudo que é público deixar de existir acaba por não levar em consideração peculiaridades da atuação tanto da iniciativa privada quanto da pública. Quais peculiaridades? A de que ambos falham individualmente e podem oferecer ajuda mútua.
Ressalta-se: estar em um desses extremos é como estar no outro. Pensemos mais sobre isso antes de pregar total estatização ou anarco-capitalismo como soluções prontas: ambas abrem caminho para o aprofundamento de falhas que poderiam ser mitigadas com uma boa atuação em conjunto.