Com o Carnaval chegando, trazendo junto toda a euforia que toma conta do país no “maior show da Terra”, por que não falarmos sobre a felicidade brasileira? E o que ela tem a ver (ou não) com Economia.
Desde o início da década atual, a ONU (Organização das Nações Unidas) e outros organismos internacionais como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) têm empreendido esforços no sentido de estabelecer métricas mais abrangentes sobre o bem-estar da população mundial. A ideia parte do debate a respeito de qual deve ser o objetivo final das políticas públicas e se este pode ser alcançado “apenas” com a elevação do nível de renda per-capita. Por favor, note as aspas ali no apenas, dada a enorme dificuldade que se coloca já neste desafio unidimensional.
É dentro deste contexto que se insere a criação do Relatório Mundial da Felicidade (ONU) e do Índice para uma Vida Melhor (OCDE), e mesmo do já mais antigo Índice de Desenvolvimento Humano (criado pela ONU nos anos 90).
O debate é bastante abrangente e envolve uma ampla literatura, empírica e teórica, nos campos da Economia do Bem-Estar, de Políticas Públicas e de Filosofia Econômica. De forma genérica, entretanto, o questionamento é se a variável monetária é suficiente como instrumento de mensuração e implementação do almejado bem-estar social.
É certo que uma renda per-capita maior está relacionada não apenas à aquisição de bens materiais, mas também ao acesso à cultura, a serviços de saúde e à uma maior liberdade de escolha, entre outras dimensões vistas como cruciais para uma melhor qualidade de vida. Neste sentido, não é surpresa a alta correlação do Índice de Felicidade da ONU – calculado a partir da avaliação dos indivíduos quanto à satisfação com as suas vidas – com o nível de renda per-capita dos países.
De fato, a relação entre as duas variáveis assume uma curva ascendente com taxas decrescentes, similar às conhecidas funções utilidade dos economistas. Aos leigos, estas funções teóricas relacionam o bem-estar de cada indivíduo com o consumo de determinados bens.
O destaque do texto, entretanto, vai para a exceção chamada Brasil. Nosso país costuma figurar no primeiro quartil dos índices de satisfação com a vida ou felicidade. Isso ocorre a despeito do menor nível de renda per-capita (e mesmo da alta concentração de renda). No gráfico acima, o leitor pode ver que a satisfação com a vida dos brasileiros é similar à de países com mais do que o dobro da nossa renda per-capita. Em uma escala de 0 a 10, a satisfação dos brasileiros alcançou em média a nota de 6,7, ao passo em que Luxemburgo (com uma renda per-capita cerca de 7 vezes a brasileira) marcou 6,9. Dentre os países pesquisados (152), apenas a Costa Rica possui um maior nível de satisfação frente a um menor nível de renda que o Brasil.
Mas da onde vem tanta alegria?
Em seu relatório anual, a ONU apresenta os resultados de regressões estatísticas que visam compreender os determinantes palpáveis (e, de certa forma, passíveis de políticas) do nível de satisfação com a vida da população. Dentre algumas das variáveis pesquisadas e analisadas pela organização, merecem destaque: a equidade na distribuição de renda do país, a percepção sobre a corrupção no governo e no ambiente de negócios, a confiança nas instituições e a expectativa de uma vida saudável. Esta última variável é calculada pela Organização Mundial da Saúde e difere da simples expectativa de vida ao nascer, incorporando aspectos sobre a saúde da população.
Como seria de se esperar, estas variáveis também não explicam o caso brasileiro. No último ranking disponível (2017), o Brasil ficou em 22º lugar entre os 155 países e regiões analisados. A participação dos grupos de variáveis explicativas no resultado final é apresentada a seguir. Conforme pode ser observado, quase metade da “felicidade brasileira" é atribuída pela ONU ao grupo “distopia e resíduo” – isto é, ao quanto o país difere daquele que seria o pior lugar em termos de todos os indicadores, somado ao resíduo da regressão.
Sendo assim, a reportada satisfação brasileira com a vida não se deve a fatores mensuráveis, ao contrário da maior parcela dos países. Ela é majoritariamente “explicada” pelo resíduo (ou seja, por fatores externos aos pesquisados) e pelo componente chamado pelos autores de “suporte social” (21,6%). Este grupo inclui perguntas relacionadas à percepção dos indivíduos quanto à presença de amigos e familiares com quem podem contar.
Assim, antes que o ano realmente comece, fica aqui mais um quebra-cabeça brasileiro: da onde vem tanta alegria?
É válido ressaltar que, apesar da importância de se ter um olhar mais amplo sobre os diversos fatores que afetam o bem-estar dos indivíduos, estes novos índices têm os problemas intrínsecos da subjetividade (como a dificuldade de se estabelecer comparações entre países e mesmo entre indivíduos). Além disso, eles também levantam questões de ordem mais abstrata e que dificilmente possuem uma resposta única. Como: qual é o objetivo último do desenho de políticas? É a felicidade dos indivíduos? Ou, deve-se priorizar mais um componente do bem-estar do que o outro? Esta é uma área importante em que a filosofia se aproxima da economia (dá uma olhadinha lá nesse artigo do Rafael).
O brasileiro, por exemplo, parece ser bastante “eficiente” em transformar renda em “felicidade”. Talvez apenas levemos a sério a mensagem de Gonzaguinha: “Viver e não ter a vergonha ser feliz...”. Ficam aqui mais perguntas do que respostas e votos de um feliz Carnaval.