"A briga de infantaria ou na guerra de trincheiras eram imagens que nos acostumamos a usar para descrever o aspecto cotidiano da briga contra a inflação. E este é o aspecto mais infernal dessa fase da guerra: todos os dias tem uma briga, mais ou menos como um longo campeonato de basquete. Todo dia tem jogo, todo dia é 102 x 101, 98 x 97; você ganha 84 coisas, perde 87; tem dias que você perde, vai dormir irritado. É sempre jogo duro, todo dia. Todo dia tem 500 ações. Está bem, 500 é exagero, mas umas 100 ações por fazer. Você ganha mais ou menos a metade, perde mais ou menos a outra metade e, com o tempo, vai ganhando mais do que perdendo. Isso inclui pequenas coisas no Ministério da Fazenda, no Banco Central e no plano administrativo, como dizer ‘não' ou ‘sim’ para determinadas demandas. Como no mercado, quando o Banco Central atua em juro, em câmbio, todo dia tem uma encrencazinha, uma queda de braço. Então, todo dia você sai de capacete. E foi assim durante quatro anos.”
“'Mas quem manda aqui? É o Bacha?’ Pois eles mostraram que quem mandava lá eram eles. Serviu de lição — de vez em quando, devemos ser duros. Mas em política não há inimigos. Há adversários. Você briga ali, sai na pancadaria diante do palanque, e de noite está todo mundo jantando no Tarantela. Não tem essa conversa. É preciso também compreender o momento da negociação. Um congressista me alertou: ‘ô Bacha, em política o relógio zera todo dia. Não entregue nada hoje para ganhar alguma coisa amanhã. O que você quer hoje, pega de volta hoje também, entendeu?’ Há essas questões de saber negociar. Saber o que é definitivo ou não, ruim de verdade ou não. E de vez em quando você tem de aceitar que não tem jeito.”
“Uma grande lição, que aprendi na época do Alan Greenspan, tanto no Banco Garantia quanto no fundo do Soros depois, mas principalmente no Soros, é que uma boa estratégia de investimento tem que cruzar as informações macroeconômicas com as microeconômicas. As microeconômicas vêm das empresas, dos setores e do comportamento cíclico de cada setor, que é algo hoje bem entendido. Na época, já era um pouco, contudo houve aprendizados ao longo do caminho. E esse olhar para o qualitativo foi, pra mim, sempre da maior importância.”
Os três parágrafos acima estão no livro “A arte da política econômica” e descrevem, na ordem, palavras de Gustavo Franco, Edmar Bacha e Armínio Fraga. Além da dica cultural, tomo os dizeres emprestados pois eles me parecem oferecer lições valiosas para o momento do Brasil e, até surpreendentemente, para as decisões de investimento envolvendo Brasil.
No momento em que escrevo, o Ibovespa acumula nove quedas consecutivas — uma regularidade de fazer inveja até para o time do Santos. Todos torcíamos pelo início do ciclo de cortes da Selic em agosto, com uma redução de 50 pontos-base, que seria, supostamente pelo menos, um catalisador importante para nossa bolsa. Cuidado com o que você deseja. Veio o corte, tal como o desejado, e nosso principal índice de ações ainda não conheceu uma alta diária sequer neste mês.
O que está acontecendo? Além do diagnóstico em si, o que poderíamos traçar de prognóstico? A tendência de alta teria se esgotado? Ou estamos apenas diante de um natural tropeço numa caminhada mais longa e profícua.
Há uma coisa interessante sobre essa correlação entre ciclo de corte da Selic e comportamento do Ibovespa. É verdade que, a julgar por comportamentos históricos, as ações tendem a subir durante ciclos de afrouxamento monetário — nos últimos seis ciclos ao longo dos últimos 20 anos, a alta acumulada média foi de 35%, com mediana semelhante. No entanto, é curioso que, na média, o mês em que ocorre o primeiro corte da Selic costuma trazer uma queda para o Ibovespa. Talvez seja aquela história de “sobe no boato, cai no fato”, com agentes antecipando o ciclo de cortes. Mas talvez seja também apenas um ruído aleatório de curto prazo. Uma amostra de seis períodos ainda é muito pequena e oferece uma variância grande. Certamente, o mundo não é ceteris paribus e há uma enormidade de outras variáveis se mexendo além da Selic.
Aqui, é prudente reler o primeiro parágrafo desta newsletter. Seja para um país em processo de crescimento ou desenvolvimento, seja para uma tendência de alta do mercado, as coisas são mais “brigadas”. Mesmo os ciclos de maior valorização das ações em longo prazo são marcados por importantes drawdowns no meio do caminho, de 20%, 30%, até 50%. Depois, quando passa, vira um soluço quase imperceptível no gráfico de longo prazo. Mas, no momento em que você está vivendo, é sofrido. Testa convicção todo dia. Uma das aulas do curso presencial de Nassim Taleb é quase integralmente dedicada a um paper publicado por um amigo dele, ex-Renaissance, mostrando, entre outras coisas, que o mercado passa 75% em drawdown. Ou seja, é sempre uma sofrência.
Veja: não sou daqueles que “dormem como um príncipe” diante de uma sequência negativa extensa. Na verdade, nunca durmo como um príncipe. Nem acho que deveria. Prefiro o velho clichê de “nós estamos sem dormir para que os clientes possam dormir bem”. Aqui, ele é verdadeiro. Sabemos que performances negativas, ainda que de curtíssimo prazo, podem incomodar os clientes. E vê-los incomodados e permanecer incólume me soa quase como desrespeito. Mas esse incômodo intelectual ou emocional, sei lá, jamais pode se transformar numa atitude irracional propriamente dita, que implique entrar em pânico e se desfazer de ativos por conta de ruídos e volatilidade de curto prazo. “Every time I see you falling, I get down on my knees and pray.” Pode chorar e rezar, mas guarde isso com você. Não saia apertando botões antes da hora.
O momento nos leva agora ao segundo parágrafo deste texto. Existe algo tipicamente ruim no mês de agosto, além do fato de ele ser infinito (não é que eu ganho pouco, o mês é que é longo). Normalmente, começamos o debate de orçamento e da LDO. Com a transferência de poder em favor do Legislativo nos últimos anos, sabemos que sobram pressões por mais emendas parlamentares, num momento de fragilidade fiscal brasileira, quando já está clara a dificuldade de alcance das metas fiscais. Algumas derrotas já estão contratadas.
O mercado não é purista, nem ascético. Se você furasse a meta em R$ 50 bilhões, mas tivesse um plano de voo claro, de estabilização da trajetória do indicador dívida sobre PIB no horizonte tangível, não teríamos grandes problemas. Poderíamos, claro, ter algum ruído ali um ou dois dias. Mas seria de fácil digestão.
Ocorre, porém, que o buraco (fiscal) parece ser mais embaixo. Mais do que isso, ninguém consegue identificá-lo com precisão. Existe uma incerteza enorme sobre como será fechado o rombo no orçamento. E se você não consegue identificar o problema em si, fica muito mais difícil dimensionar o risco e fazer conta. Daí o mercado bate.
Há um triângulo amoroso meio bizarro entre os indicadores macroeconômicos clássicos, as relações institucionais e as relações microeconômicas.
De alguma maneira, o macro foi razoavelmente ajustado. A inflação está sendo domada, inclusive num processo mais acelerado do que no resto do mundo. Os juros estão caindo. A atividade tem, no geral, superado as projeções. E o arcabouço fiscal afastou a hipótese de completo desrespeito à aritmética elementar das contas públicas, depois de termos flertado de maneira entusiasmada com algo nessa direção horrível. As relações institucionais também melhoraram, diante de maior harmonia entre os poderes e uma eleição que, a despeito de ruídos aqui e ali, respeitou o trâmite democrático e emitiu importante sinal ao gringo (sim, parte dele tinha medo do desfecho).
Mas justamente porque há um rombo no orçamento, faltando algo entre R$ 100 bi e R$ 150 bi, e o governo optou por fazer um ajuste fiscal pela receita, existe uma incerteza microeconômica enorme. Quem vai pagar a conta? A economia como um todo conseguirá suportar uma elevação adicional na já elevada carga tributária? “Ah, mas a reforma tributária vai ser neutra…” Desculpe, tente explicar para algum empresário que está saindo de um regime especial para outro de alíquota cheia e que isso é apenas o fim de regimes específicos…. Para o Seu João, aquilo é aumento de carga, meu caro…
Esse desconhecimento sobre o plano e sobre eventual pacote tributário cria o medo do que pode vir uma espécie de “lobo atrás da porta” que tira o sono de qualquer um, até dos príncipes… E vem nos acometer num momento em que voltamos a temer os efeitos potenciais de um estouro da bolha imobiliária na China e as taxas de juro de mercado voltam a subir lá fora.
As ações brasileiras ainda são baratas, frente a um mundo desenvolvido que, no geral, é caro e à falta de opções viáveis entre outros mercados emergentes (México é a exceção, mas já andou). A posição técnica ainda é razoavelmente convidativa. Mas a caminhada não será um passeio no parque, principalmente se olharmos o Ibovespa como um todo. Os bancos são uma espécie de “malvado favorito típico”, alvo usual de pacotes tributários e não seria surpresa se, de novo, viessem a ser chamados a pagar a conta. Vale (BVMF:VALE3) (siderurgia e mineração em geral) sofre com o medo da China. E Petrobras (BVMF:PETR4) não sabe o que faz da vida: se participa do PAC, se explora a Foz do Amazonas, se reajusta o combustível ou se chama o Gabrielli de volta. Aí já foi mais da metade do índice.
A tendência de alta está preservada, mas ela deve exigir um pouco mais de seletividade, além de um estômago de avestruz.