Com atraso de alguns dias, comecemos o mês de setembro, porque esses dois primeiros pregões não nos deram muita trégua em termos sistêmicos. A julgar pelo comportamento das Bolsas lá fora nesta manhã, temos espaço para um recomeço. Já chego lá.
Nessa de ouvir sempre pessoas mais inteligentes e mais ricas do que eu, uma vez fui a um evento para ouvir um renomado gestor. No caso, bem mais inteligente e bem mais rico — não necessariamente nessa mesma ordem.
Ele começou mais ou menos assim: “Gestão de recursos é como um filme pornô. Não adianta você fazer bem uma posição. Você precisa ir bem em todas, olhar a coisa como um todo. Se o sujeito olha uma posição minha e quer copiar, pode ser uma tragédia, porque aquilo fica descontextualizado e pode não fazer sentido dentro do portfólio daquele investidor. A carteira é — e precisa ser — pensada como um todo. Cada posição ali dentro cumpre um determinado papel”.
Embora eu já estivesse mais na fase dos filmes cult e dos clássicos, com maior ênfase no cinema europeu e mais precisamente na Nouvelle Vague, gostei da analogia. A plateia se dividiu. Teve uma mulherada meio constrangida e uns rabinos se entreolhando — eu percebi. Achei divertido e ria por dentro, sem deixar ninguém perceber; pessoal educado, sabe? Mas aquilo ficou na minha cabeça e agora voltou diante das adversidades que se colocam sobre a economia mundial.
Não sei se você percebeu, mas as coisas pioraram lá fora — em que pese alguma recuperação dos mercados hoje (ao menos até agora; sempre bom essa salutar ressalva).
Não há qualquer sinal efetivo de resolução final para o conflito comercial, político e tecnológico entre EUA e China. Temos de lidar com a comunicação intempestiva e, para dizer o mínimo, peculiar de Donald Trump no Twitter, ferindo a liturgia canônica das relações diplomáticas tradicionais, enquanto Xi Jinping parece manter-se fiel ao plano de fazer a China percorrer uma nova Longa Marcha, conforme discurso de maio, o que sugere disposição para sacrifícios e firmeza nas negociações com os EUA.
Ao mesmo tempo, a atividade industrial norte-americana, que já vinha preocupando, emitiu sinais ainda piores ontem. O PMI oficial marcou 49,1 pontos, abaixo dos 52,1 pontos anteriores e dos 51 pontos esperados. Para reforçar o temor, veio abaixo da marca dos 50 pontos, que delimita expansão ou retração.
A reação dos mercados ontem foi imediata. Houve uma corrida em direção a ativos mais seguros, sob o temor de que a economia mundial esteja à beira de uma recessão. O rendimento dos Treasuries caiu de forma significativa e o ouro subiu 1,73 por cento, para 1.556 dólares por onça.
Eu ainda não tenho a recessão norte-americana como cenário mais provável. Minha expectativa central aponta mais para um mundo anêmico de crescimento muito baixo, inflação baixa e juros cada vez mais baixos.
Vai ganhando força na minha cabeça a ideia de que os fatores para os juros zerados ou até mesmo negativos são mais estruturais do que conjunturais. Forças demográficas vão empurrando as taxas de poupança para cima — se você já tem atendidas suas necessidades mais elementares, como é para a maior parte nos países desenvolvidos, e sabe que vai viver por décadas na aposentadoria, vai precisar poupar mais, sem exigir muita recompensa financeira (juro) pela postergação de consumo. Ao mesmo tempo, a tecnologia atua como importante força deflacionária e diminui a necessidade de capex — fica mais barato aumentar a eficiência da produção.
Note que tanto a demografia quanto a tecnologia são forças estruturais, não passageiras ou momentâneas. A não ser que haja uma revoada de cisnes negros, o mundo vai ficar cada vez mais velho e cada vez mais tecnológico, numa caminhada sem volta e numa única direção. Ou seja, as taxas de poupança vão aumentando e as de investimento caindo indefinidamente.
Então, se você aplicar essa dinâmica ao gráfico dos processos cumulativos de Wicksell, que relaciona oferta e demanda por fundos emprestáveis (não confundir com fundos imprestáveis, tão populares no mercado brasileiro), cuja interação forma a taxa de juro de equilíbrio, vai perceber que, conforme defendeu Alan Greenspan, o zero é só um número como outro qualquer. A oferta de poupança, expandindo-se com a passagem do tempo, pode cruzar com a demanda por investimento, reduzindo-se no percurso histórico, em qualquer nível inferior a zero, por que não?
Nesse caso, as taxas de juro negativa não seriam causadas por distorções implementadas pelos bancos centrais, que jogaram zibilhão de dólares na economia para salvar o sistema capitalista da crise de 2008. Ao contrário, os BCs seriam vítimas de um inexorável processo histórico, atuando atrás da curva, e não à frente. Eles apenas responderiam a condições naturais do sistema econômico.
Ontem mesmo, enquanto o mercado clamava por novos cortes de juro nos EUA, Eric Rosengren, do Fed, descartou necessidade de ação imediata. Os investidores já davam como certas novas ações do banco central americano, que, por sua vez, resiste a uma atitude mais contundente. O Fed, portanto, não está numa posição de se antecipar aos movimentos, mas de reagir, talvez até tardiamente, à desaceleração da economia.
Vale (SA:VALE3) dizer que a produção industrial brasileira também decepcionou fortemente ontem, afastando a hipótese de interrupção ou antecipação do fim do ciclo de corte da Selic — encerraremos 2019 com juro básico de 5 por cento, talvez menos. E não será surpresa se viermos a discutir a hipótese de juros reais de curto prazo zerados; aliás, como é no mundo inteiro.
Resumo da história: a coisa está mais nebulosa e sombria na margem. A chance de recessão global entrou de vez na conversa e o crescimento econômico brasileiro insiste em não pegar no tranco. Evidentemente, sob forte desaceleração lá fora, ficaria ainda mais difícil para crescer com força aqui. Por ora, ainda é só uma perda de velocidade na margem, com o efeito sobre os preços dos ativos podendo ser amenizados por quedas adicionais nos juros.
De todo modo, o mundo vai ficando mais incerto, sem deixar muito espaço para se saber o que vai acontecer. E quando não se sabe o que fazer, só resta o caminho da diversificação. Precisaremos cada vez mais de um portfólio calibrado, balanceado, sem uma grande exposição direcional do tipo all-in. Insisto na importância do asset allocation e não da obsessão gananciosa e destruidora de uma ou outra posição individual.