Quando eu era mais jovem, achava o tema “Ética” óbvio, coisa que aprendera em casa. Meu pai, advogado, aconselhava: ”A maior malandragem é ser honesto e poder dormir tranquilo”. Já minha mãe sempre dizia: ”se todo mundo se atirar na frente do ônibus, você vai se atirar também?”. Esta última servia para diferentes propósitos, desde evitar modismos vazios até alertar que uma coisa errada continua sendo errada, mesmo que “todo mundo” esteja fazendo.
Já na esfera das empresas, parece existir muita dúvida sobre o tema. Ou, pelo menos, fortes incentivos contrários a um comportamento ético em alguns contextos. Mas, ao menos na minha experiência, não ser ético de modo “consistente” tende a causar muito mais prejuízos no longo prazo do que lucros. Inclusive (e, muitas vezes, principalmente) para os que nada sabiam do comportamento, mas que deveriam estar mais vigilantes...ou desconfiados. Vamos exemplificar com o caso emblemático da Enron.
A Enron Corporation foi criada a partir da fusão de duas grandes empresas de gasodutos em 1985. A fusão gerou muitas dívidas para a nova empresa que, durante o período de desregulamentação deste mercado nos Estados Unidos, perdera os direitos exclusivos a seus gasodutos. Tal necessidade induziu a Enron a ser mais criativa. A McKinsey, maior empresa de consultoria estratégica do mundo, foi contratada para assessorar no desenvolvimento de novos negócios. A chave para o crescimento meteórico da empresa foi assumir o papel de intermediadora de transações no mercado de gás natural. A Enron fez sucesso sendo um “banco de gás” e passou a buscar os melhores alunos dos principais MBAs do mundo, competindo com as grandes consultorias e as empresas da Wall Street. Conforme crescia em tamanho e prestíigio, imitava a cultura dos bancos de investimento quanto a horas de trabalho, padrões de desempenho, recompensas e riscos. Praticamente não havia limites para as bonificações em uma cultura corporativa que permitia que os seus negociadores “comessem tudo que pudessem matar”. A Enron e seus executivos eram também muito bem relacionados politicamente, tendo feito contribuições significativas a proeminentes candidatos eleitos. Outras empresas, como Global Crossing e WorldCom, seguiram caminhos similares.
Por meio de subsidiárias e afiliadas, a Enron comercializou gás natural, eletricidade e outras commodities em todo o mundo. Ao longo da década de 1990, transformou-se de uma empresa de gás tradicional em uma empresa diversificada de US$150 bilhões e favorita de Wall Street. Entre 1998 e 2000, as receitas da Enron cresceram de US$ 31 bilhões para US$ 100 bilhões, tornando-a a sétima maior empresa no Fortune 500. Seu crescimento foi vinculado ao boom da Internet e das telecomunicações, com a formação da Enron Online para banda larga. O ápice do crescimento do valor de mercado da empresa se deu em agosto de 2000, ao anunciar um empreendimento com a Blockbuster para fornecer vídeo sob demanda utilizando Internet de alta velocidade. Cada uma de suas ações valia então US$ 90,75.
À medida que a Enron se expandia para áreas de negócios, além das que lhe eram familiares, as transações se tornavam mais arriscadas e sua contabilidade tornava-se mais complexa. A empresa enfrentava intensa competição no que eram essencialmente negócios de commodities, com maciços investimentos de capital, e seus resultados financeiros começaram a sofrer. Só que seus principais executivos eram movidos a polpudos bônus, e esconderam, o quanto puderam, os resultados de seus acionistas e do mercado em geral. E contaram, se não com a conivência, com a incompetência de um ecossistema ao seu redor, formado por escritórios de advocacia, bancos de investimentos, consultorias, agências acreditadoras e, principalmente, com a empresa de auditoria Arthur Andersen, então a maior do mundo, que acabou extinta ao final desta história.
Quando algumas das mais arriscadas transações começaram a ir mal, e não foi mais possível esconder tudo que estava acontecendo, a confiança na empresa erodiu entre os analistas e investidores institucionais, e o preço das ações declinou vertiginosamente. Depois de anunciar sua primeira perda trimestral em quatro anos e acusada de uma dívida de US$ 1 bilhão em outubro de 2001, o declínio da Enron acelerou- se até a declaração de falência em dezembro. Foi nesta época que começaram as investigações da SEC (Securities Exchange Commission, equivalente à CVM – Comissão de Valores Mobiliários do Brasil), a destruição de documentos comprometedores e o bloqueio das ações dos funcionários. Em janeiro de 2002, cada ação da Enron valia apenas US$ 0,12 e seus acionistas tiveram perda de US$ 11 bilhões.
Assim que foi decretada a falência, o Departamento de Justiça e a SEC abriram investigação em todo os EUA. A matéria foi objeto de inquéritos no Congresso e processos judiciais civis. As instituições que financiavam a Enron, inclusive a J.P.Morgan e o Citigroup (NYSE:C), foram questionadas pelo grau de exposição a que se submeteram. A condenação da Arthur Andersen, pela destruição dos documentos, forçou muitos de seus auditados a reexaminar seus livros contábeis e procurar novos auditores. A Enron havia construído seu império com castelos de areia.
O professor Malcolm Salter, de Harvard, comparou o caso da empresa ao desastre do ônibus espacial Challenger. Enquanto este foi uma dolorosa experiência de aprendizado para os engenheiros, a derrocada da Enron o foi para os executivos. Quem se engaja em empreendimentos excessivamente competitivos corre o risco de ser afetado por essas patologias sociais que se tornaram tão disseminadas e toxicas na Enron. Se os executivos da Enron usaram incentivos de desempenho “turbo”, se esqueceram que estes demandariam controles também fortes. Antes da fraude houve inovação significativa, mas ela deu lugar ao jogo irresponsável com ativos e trouxe o fim da empresa. Houve a tentativa de comoditizar energia elétrica, água e banda larga, apesar de pontos críticos de diferença com o gás natural.
Colocando de lado a questão dos modelos de negócios e controles, história principal foi um caso de “derrapagem ética”. O caso Enron mostrou como um time de executivos criou uma cultura extremamente orientada para o desempenho que tanto institucionalizou quanto tolerou desvios de comportamento. É uma história também sobre o sistema que cresceu ao redor da empresa, seus vários intermediários e prestadores de serviços, que acobertou ou não foi capaz de enxergar o que estava de fato acontecendo. O caso mostrou como a fraude é geralmente precedida de incompetência, derivada de inexperiência e uma atitude em relação à vida de que os “fins justificam os meios”. E, mais importante, de uma incapacidade de encarar a realidade quando os resultados não se materializam e problemas aparecem.
E a derrapada ética da Enron foi ainda motivada por um desejo de gerenciar a avaliação de crédito e as necessidades de capital de giro, além da volatilidade das receitas, em violação às regras GAPP e da SEC. O resultado foi “o contágio emocional e a normalização dos desvios”, nas palavras do professor Salter. A Enron foi o maior escândalo empresarial de sua época, e a Lei Sarbanes-Oxley foi aprovada para tentar proteger os acionistas de fraudes dos executivos em situações similares.
Teria o mundo dos negócios aprendido sua lição com o colapso da Enron? Ao discutir este caso com uma turma de graduação em 2022, fiquei surpreso que nenhum dos alunos havia sequer ouvido falar da Enron! (Reconheci que o caso já fizera 20 anos e, obviamente, me senti velho). Fiz o mesmo em uma turma de MBA Executivo e vários alunos também não haviam ouvido falar da empresa. O risco é que este rico exemplo se perca e fiquemos fadados a repeti-lo. Você conhecia a Enron? Sua história fez lembrar de alguma outra empresa em relação aos desvios éticos e ao impacto para seus acionistas? Com certeza sim, e de várias outras além da que você está pensando!
Infelizmente, a ganância e a má́ conduta corporativa continuaram a ser um problema ao longo da primeira década do século XXI, culminando na recessão global de 2008–2009. Muitas empresas valorizam o alto desempenho a qualquer custo, mesmo quando executivos parecem tomar atalhos não muito éticos. A crise dos empréstimos subprime e de outros instrumentos financeiros de risco levou ao estouro de uma bolha imobiliária nos EUA, cuja recessão resultante afetou o mundo inteiro, levando à falência, empresas estabelecidas como a Lehman Brothers e exigindo intervenção do governo norte-americano no valor de quase US$ 1 trilhão em fundos do TARP (Troubled Asset Referendum Program) para salvar várias firmas financeiras. O colapso econômico inspirou uma nova onda de legislação projetada para evitar a má́ conduta corporativa, incluindo a Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act.
Já a segunda década do século XXI trouxe novos escândalos corporativos, como os casos da Perdue Pharma e seu medicamento Oxycontin, da alemã Wirecard e suas práticas comerciais corruptas e relatórios financeiros fraudulentos, ou ainda da Theranos de Elizabeth Holmes, a “nova Steve Jobs”.
O mercado financeiro e os órgãos reguladores parecem sempre um passo atrás da ganância de alguns sociopatas corporativos. O caso da Theranos é tão ilustrativo deste ponto que será o alvo de nossa segunda coluna sobre o tema ética. Ao final, vamos tentar esboçar um arcabouço decisório para evitar encrencas semelhantes. Até lá!