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INVESTIGAÇÃO-Na Amazônia brasileira, projeto de crédito de carbono em xeque alimenta receio de grilagem de terras

Publicado 27.03.2023, 09:31
© Reuters. Imagens captadas por drone mostram área desmatada da Amazônia perto de Uruará, no Pará
21/01/2023 REUTERS/Ueslei Marcelino

By Andre Cabette Fabio

RIO DE JANEIRO, 27 Mar (Thomson Reuters Foundation) - Um projeto corporativo de conservação da floresta amazônica brasileira vendeu créditos de carbono ligados a terras públicas sem autorização do Estado, segundo uma investigação do Context, trazendo à tona preocupações quanto à credibilidade dos ativos financeiros gerados sobre áreas cuja propriedade está sob disputa.

    Uma análise das matrículas de imóveis e processos judiciais, e entrevistas com agentes públicos do Pará revelam como um programa de compensação de carbono continua a operar vários anos após o estado registrar a maior parte da área do projeto como terra pública – um marco institucional que desencadeou uma complexa batalha jurídica.

    Em 2020, o Projeto Jari Pará REDD+ ganhou aprovação para emitir créditos de carbono da Verra, uma organização líder no setor de certificação de compensações por emissões, tornando-se o maior projeto registrado da instituição no Brasil em termos de área. Ele cobre cerca de 497.000 hectares, uma área mais de quatro vezes maior do que Hong Kong.

    Em resposta à investigação do Context, a Verra disse que lançou uma revisão do Projeto Jari Pará REDD+, e que suspendeu a emissão de novos créditos de carbono.

    O Jari Pará faz parte de um programa REDD+ mais amplo no Vale do Jari, administrado por duas empresas privadas - a Jari Celulose, que produz celulose solúvel utilizada na produção de tecidos, e a Biofílica Ambipar (BVMF:AMBP3) Environment, especializada em compensações de carbono - juntamente com a Fundação Jari.

    O programa visa reduzir emissões causados por desmatamento e degradação e proteger a biodiversidade, apoiando meios de a população local obter sustento, como o processamento da castanha do Pará, que mantém intactas as árvores assim como o carbono que elas armazenam.

    Os compradores dos créditos do projeto Jari Pará incluem as empresas internacionais Janssen, 3M, CNN e BMW, e as brasileiras Globo e Bradesco (BVMF:BBDC4), que fazem essas aquisições para compensar as emissões de seus próprios negócios ligadas à mudança climática, ao mesmo tempo em que protegem as florestas.

    Entretanto, um procurador do estado do Pará e pesquisadores disseram ao Context que o projeto Jari Pará contraria a legislação brasileira porque vendeu créditos de carbono baseados em uma reivindicação inválida a uma parcela de terra de 386.000 hectares, conhecida como Fazenda Saracura, arrecadada e registrada como propriedade pública em 2018.

    Ibraim Rocha, procurador do estado do Pará à frente do caso há mais de uma década, disse que "sem dúvida" a área agora é "propriedade do estado".

    Ele acrescentou que a Jari Celulose não tem direito legal à terra e não pode executar um projeto de compensação de carbono nela, pois o código florestal brasileiro e sua legislação sobre produção sustentável em florestas públicas estipulam que os negócios privados só podem ser conduzidos nessas áreas com permissão do Estado.

Documentos usados no registro do projeto de crédito de carbono enviados à Verra em 2019 afirmavam que a Jari Celulose era "a legítima proprietária" da fazenda Gleba Jari-I onde o projeto está localizado. Isso inclui a parcela da Fazenda Saracura, que havia sido registrada como terra pública no ano anterior.

    Em resposta às informações obtidas pelo Context, a Jari Celulose disse que uma decisão provisória de primeira instância da Vara Distrital de Monte Dourado determinou em 2021 que a empresa tem "posse" da Fazenda Saracura, o que, em direito imobiliário, denota um grau considerável de controle sobre um ativo, mas não equivale a ter propriedade.

A Jari Celulose afirmou que a sentença de 2021 coloca em xeque a decisão do estado de registrar a Fazenda Saracura como terra pública em 2018, acrescentando que isso permitiria à empresa reivindicar a propriedade da terra por usucapião.

    Tanto a Jari Celulose quanto a Biofílica disseram que, de acordo com as regras da Verra, ter posse da área seria suficiente para vender créditos de carbono ligados à proteção florestal.

    No entanto, Rocha afirmou que a retomada da Fazenda Saracura pelo Estado torna impossível a posse da área pela Jari Celulose, citando decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

    Em 2022, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA), que é a autoridade fundiária do estado, recorreu à segunda instância para revogar a decisão de 2021 sobre a posse da terra pela Jari Celulose. Uma decisão final ainda não foi tomada.

    Este mês, após ser informado pelo Context da sentença de 2021, Rocha também peticionou em primeira e segunda instância que a decisão seja revogada.

    Dois acadêmicos - José Heder Benatti, pesquisador da Universidade Federal do Pará e ex-presidente do ITERPA, e Gustavo Kloh, professor de direito da FGV - analisaram a decisão de 2021 a pedido do Context e disseram que ela não reverteu o registro da terra como propriedade pública.

    ATIVOS FINANCEIROS SOBRE TERRAS DISPUTADAS

    O caso do projeto Jari Pará acentua a crescente preocupação de acadêmicos e  agentes públicos brasileiros de que ativos financeiros – de créditos de carbono a tokens não fungíveis (NFTs) – vêm sendo criados e vendidos internacionalmente com base em reivindicações de propriedade sobre terras da Amazônia que são contestadas ou foram consideradas inválidas pelas autoridades governamentais.

    O desenvolvimento do projeto REDD+ Jari Pará começou em 2014 na terra que a Jari Celulose diz que está sob seu controle desde 1948.

    Mas a análise do Context da documentação e dos processos judiciais relativos à Fazenda Saracura descobriu que um tribunal estadual concluiu em 2012 que a empresa não era proprietária da área. A partir desta decisão, o registro do imóvel foi cancelado em 2016.

    Em 2018, o estado registrou a Fazenda Saracura em cartório como propriedade pública, mudando seu nome para Gleba Arraiolos.

    Apesar disso, os documentos de 2019 para descrição e validação do projeto REDD+ Jari Pará listados no site da Verra incluem um link para um registro em nome da Jari Celulose da parcela de terra no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF).

    O site do SIGEF informa, no entanto, que a parcela foi cancelada em 2016 e é inválida.

    A propriedade de terras é uma constante fonte de disputas na Amazônia brasileira, marcada por um sistema de registro frágil e pela prática comum de reivindicar a propriedade de terras públicas, muitas vezes utilizando documentos produzidos ou alterados sem base legal, suscitando longas batalhas judiciais.

Rocha disse que o caso do projeto Jari Pará "comprova que na Amazônia ainda não enfrentamos a questão da grilagem".

    Agora, "surgiu esse complicador dos créditos de carbono", acrescentou em uma entrevista por telefone, em que descreveu a prática de gerar créditos a partir de terras públicas como "grilagem de carbono".

    MATRÍCULAS PRIVADAS DE IMÓVEIS CANCELADAS

    O processo judicial que levou a Fazenda Saracura a ser registrada como pública se somou a esforços do Tribunal de Justiça do Estado do Pará e do Conselho Nacional de Justiça, que nas duas últimas décadas cancelaram ou bloquearam milhares de documentos de terra privados emitidos por cartórios em todo o Pará, incluindo todas as parcelas de terra utilizadas no projeto REDD+ Jari Pará.

    Quando uma matrícula é bloqueada, ela não pode ser vendida sem autorização judicial.

    Historicamente, a grilagem de terras no Brasil vem sendo facilitada por matrículas de imóveis irregulares emitidas por cartórios que nunca chegaram a ser verificadas pelas autoridades governamentais. 

    De acordo com uma pesquisa publicada em janeiro por organizações ambientalistas, incluindo Imazon e Climate Policy Initiative, a Fazenda Saracura é o único caso conhecido publicamente entre as milhares de matrículas canceladas pelo Estado que foi registrado pelo governo como propriedade pública desde então.

Autoridades e pesquisadores disseram que o registro coloca em questão a credibilidade do projeto REDD+ Jari Pará, que foi projetado para gerar créditos de carbono e receitas com sua venda por três décadas, de 2014 a 2044.

    Em uma declaração anterior a um juiz do estado do Pará, a Jari Celulose disse que esperava receber pelo menos R$ 45 milhões com a venda de créditos de carbono durante um período não especificado.

    Girolamo Treccani, pesquisador da Universidade Federal do Pará que ajudou as autoridades a investigar as reivindicações de terras da Jari Celulose, questionou como um projeto planejado para 30 anos poderia ser "baseado em algo que é tão precário", em referência à batalha em torno dos documentos fundiários.

   VERRA AVALIA A 'PROPRIEDADE DO PROJETO'

   A Jari Celulose disse ao Context que tem o direito de operar um projeto de carbono na área da Fazenda Saracura, apesar da mesma ter sido declarada pública, porque uma decisão provisória de primeira instância determinou que a autoridade fundiária do estado, ITERPA, não deveria tomar medidas contra a posse da empresa sobre a área.

    A corte afirmou que o ativo é central para o processo de recuperação judicial do Grupo Jari, que controla a Jari Celulose, e que opera em silvicultura, papel e embalagens.

    Em um caso relacionado, os certificados de propriedade de outra parcela de terra do projeto Jari Pará, de 120.000 hectares, chamada Santo Antônio da Cachoeira, foram bloqueados em novembro de 2022 por uma decisão de segunda instância.

A decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará citou apuração da Promotoria de Justiça Agrária do estado, segundo a qual teriam sido identificadas inconsistências nos documentos que levaram ao registro do imóvel.

    Assim como no caso da Fazenda Saracura, o Ministério Público do estado solicitou que esta área menor seja registrada como pública. Ainda não houve uma decisão final da corte neste segundo caso.

     De acordo com Herena Melo, a promotora de Justiça Agrária que conduziu esta investigação, os cancelamentos e bloqueios vigentes sobre as reivindicações de terras da Jari Celulose garantem que "a terra não pode ser usada – os créditos não podem ser negociados".

    A Jari Celulose disse que está seguindo procedimentos para regularizar a área de 120.000 hectares, assim como outras incluídas no projeto de crédito de carbono que estão atualmente canceladas ou bloqueadas.

    A Verra disse ao Context que está revisando se a Jari Celulose tem "propriedade do projeto" Jari Pará - o que, segundo as suas regras, significa o "direito legal de controlar e operar as atividades do projeto". Segundo a instituição, esse conceito "difere da propriedade da terra".

    A Biofílica disse que foi notificada pela Verra sobre a revisão, enquanto a Jari Celulose disse que não foi notificada.

    Durante o processo de registro na Verra, a empresa italiana de auditoria RINA,  verificadora do projeto Jari Pará, observou em um relatório de 2019 que os cancelamentos estaduais que afetavam as propriedades rurais do projeto não "implicavam na perda automática da propriedade".

    O RINA disse ao Context que seu papel não era "verificar a propriedade da terra", mas "certificar a conformidade do projeto com as normas da Verra", acrescentando que a documentação apresentada pelos controladores do projeto "era satisfatória".

    Neste mês, o Context obteve junto a um cartório no Pará as 17 principais matrículas de imóveis do projeto analisadas pelo RINA, e verificou que quatro ainda estavam bloqueadas e as restantes, canceladas.

    Segundo Melo, isso significa que as matrículas ainda estão inválidas, mas aquelas não relacionadas à Fazenda Saracura - que foi declarada terra pública – podem ser revalidadas.

    MADEIRA FORA, CARBONO DENTRO

    A partir de 1500, quando Portugal começou a colonizar a área que compõe o Brasil moderno, todas as terras do país são legalmente consideradas propriedade do Estado, a menos que sejam transferidas para a propriedade privada. 

    Mas ainda existem mais de 50 milhões de hectares de terras públicas - concentradas na floresta amazônica - que nunca foram legalmente destinadas como propriedades privadas ou áreas protegidas, o que as deixa vulneráveis à grilagem.

    Em maio de 2022, a Agência Pública reportou que o Projeto Ecomapuá Amazon (NASDAQ:AMZN) REDD, que também é certificado pela Verra, estava vendendo créditos de carbono ligados a duas reservas públicas de conservação no estado do Pará.

    Quando questionada pelo Context sobre este projeto, a Verra disse que recentemente obteve a informação de que o controlador deste projeto estava "passando por um processo legal para esclarecer ... seus direitos em relação ao uso das terras".

    A Verra disse que estava analisando informações sobre este processo judicial para definir qual será seu próximo passo, que pode incluir uma revisão do projeto de carbono e a suspensão da emissão de créditos.

    Em uma outra frente, o jornal britânico The Guardian noticiou em meados de março que a Verra planeja eliminar gradualmente e substituir seu programa de compensação de carbono de florestas tropicais até julho de 2025.

    Em resposta, a Verra disse ao Context que não está eliminando ou substituindo as metodologias que utiliza para o programa, mas sim "consolidando e atualizando" a ambas, em um processo que teve início há vários anos. 

    O pesquisador Treccani, coautor do relatório de 2023 sobre o combate à grilagem de terra em cartórios no Pará, descreveu a venda privada de créditos de carbono derivados de documentos de propriedade inválidos como grilagem "pintada de verde".

© Reuters. Imagens captadas por drone mostram área desmatada da Amazônia perto de Uruará, no Pará
21/01/2023 REUTERS/Ueslei Marcelino

    Treccani observou que, no passado, grileiros estavam mais interessados na extração de madeira - mas o prêmio mudou.

    "Agora o que interessa é [oferecer] uma pretensa solução ao problema das mudanças climáticas, mas ganhando dinheiro sobre o que é público", disse.

 

(A Thomson Reuters Foundation é o braço humanitário da Thomson Reuters. Visite https://www.context.news/)

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