A CampSeg, empresa do irmão de um assessor especial do governador Tarcísio Freitas (Republicanos), arregimentou policiais militares, agentes prisionais e guardas civis para fazer a segurança patrimonial da ferrovia na região do porto de Santos. Documentos oficiais, vídeos e cópias de conversas de WhatsApp do grupo da empresa, obtidos pelo Estadão, mostram indícios de desvio de viaturas que deviam atender o telefone 190 para patrulhar a linha férrea em áreas rurais, além de possível acionamento do helicóptero Águia, da PM, por chefes da empresa. Especialistas e ex-comandantes da PM defendem a apuração de potencial apropriação privada da segurança pública.
A CampSeg é uma empresa fundada pelos irmãos Nelson e José Vicente Santini. Este último figurava entre os donos até 2021. Próximo do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), ele trabalhou na Casa Civil no governo de Jair Bolsonaro (PL) até ser afastado por usar um avião oficial para viajar à Índia. Ganhou depois um cargo no Ministério da Justiça, onde ficou até o fim da gestão. Hoje é assessor especial do governador paulista. Seu irmão Nelson foi policial das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) e trabalhou com o secretário estadual da Segurança Pública, o capitão Guilherme Derrite.
Após saírem da Rota, Nelson e Derrite entraram na política. Nelson virou vereador em Campinas, em 2016, mas não se reelegeu. Derrite se tornou deputado federal em 2018. E foi reeleito. O maior doador pessoal de sua última campanha foi o amigo Nelson: R$ 88,6 mil, segundo a Justiça Eleitoral. Nelson é sócio de Arnaldo Costa Vargas, empresário do ramo de segurança em Brasília que doou R$ 200 mil à campanha de Tarcísio. Esta pagou à CampSeg R$ 116 mil por serviços de segurança.
A CampSeg anunciou sua ação na Baixada Santista em 2 de janeiro, após ser contratada pela concessionária da linha férrea - a Rumo Logística (BVMF:RAIL3). No dia 9, a Rumo se reuniu com Derrite. Depois, o comando da PM mobilizou tropas especiais contra o roubo de cargas na ferrovia. A pasta justificou a medida tomada já nos primeiros dias de janeiro em razão do aumento do crime, registrado depois nos dados do primeiro bimestre (61%), envolvendo até incêndio de trem e danos de R$ 200 milhões.
A ação das tropas da PM e a dos seguranças da CampSeg provocou uma tragédia: a morte do sargento da reserva da PM Reginaldo dos Santos Conceição e a do guarda civil Wagner Moreira Coelho. No dia 25 de janeiro eles foram atingidos por tiros de fuzil disparados por homens do Comando de Operações Especiais (COE), da PM, que estavam emboscados na Mata Atlântica e os confundiram com ladrões de um trem.
"Nem imaginavam (que o COE estava lá). Mudou de empresa (de segurança) e a CampSeg assumiu. O COE não tinha noção do que se passava, não foi informado que havia policiais militares prestando serviço à CampSeg", disse Fabiana Conceição, de 45 anos, viúva do sargento. Esse não foi o único caso de agente público morto ou ferido a serviço da CampSeg. Um policial penal foi baleado no pescoço ao lado da linha do trem, no dia 8 de março, em São Vicente.
Os agentes Pires e J. Souza, assim identificados no grupo de mensagens, foram os responsáveis por contratar policiais em Praia Grande, Cubatão e São Vicente. Pagava-se R$ 28 a hora ou R$ 336 por dia e R$ 5 mil por mês. Ao todo, 260 pessoas participavam de um dos grupos de WhatsApp do esquema: o Tático RUMO/ Tático TO Paratinga. O Estadão pesquisou 54 dos telefones do grupo e constatou que 19 estão associados a nomes de PMs, 20 a de agentes e policiais penais, nove a guardas civis de três cidades e cinco a PMs aposentados.
A reportagem obteve mensagens, fotos e vídeos do grupo. Eles mostram que o capitão Felipe Barboza, do 4º Batalhão da Polícia Rodoviária, era um de seus administradores. Desde fevereiro, Barboza atuava para a CampSeg sem estar licenciado da PM, conforme disseram policiais à reportagem e mostram as conversas dele no grupo. Só em 17 de março, após ser filmado no dia 13 de março pelo jornal A Tribuna em operação com a roupa da empresa, ele se licenciou.
Águia
Cópias de mensagens sugerem policiais da ativa fiscalizando o atendimento de operadores do telefone 190 e que o helicóptero Águia da PM foi engajado por gerentes antes de o 190 ser avisado. Em 11 de fevereiro, o agente Pires relata "12 vagões com a bica aberta". O capitão Barboza pergunta às 21h17 se a equipe está bem. Um minuto depois, o gerente Vaz, da empresa de segurança, ordena: "Acionem o 190 a cada dez minutos. Estou ajustando o apoio do Águia no local". Só depois é que o agente Luciano Brabo diz ter avisado a PM por meio do 190. O capitão então responde: "Boa".
Em várias mensagens, seguranças relatam a presença de viaturas do Baep - Batalhão de Ações Especiais, tropa de elite - e de outras unidades de policiamento ao lado da ferrovia. Eles controlavam cada passagem delas e comemoravam. Foi assim quando o capitão Barboza anunciou que um helicóptero estava sobrevoando a "área de cobertura". "Somos nós", escreveu. E compartilhou um emoji de punho fechado. O cabo Alves, do 2º Baep, respondeu: "Aí sim". Só então Vaz, o gerente, ordena: "Favor fazer o 190".
Após o Estadão procurar a Secretaria da Segurança e a CampSeg, o capitão e os ajudantes começaram a desmontar os grupos de WhatsApp, excluindo dezenas de agentes públicos. A reportagem obteve vídeo mostrando a implosão de um grupo.
O Estadão teve acesso ainda a documentos da PM, como ordens de serviço da 3ª Companhia do 39.º Batalhão para o Comando de Grupo de Patrulha 3 deslocar por 20 dias alternados - de 24 de janeiro a 30 de março - viaturas que atendiam o 190 para a inóspita Estrada Paratinga, ao lado da ferrovia, em São Vicente, apesar de o batalhão contar com patrulha rural. Entre janeiro e fevereiro, houve 2.679 roubos (75 de cargas) na Baixada, 12% a mais do que 2022 - o roubo de carros cresceu 16% - e uma onda de sequestros de turistas nas estradas, na volta do litoral.
DESVIOSEspecialistas dizem não haver razão para deslocar meios ostensivos da PM para a ferrovia em vez de proteger as pessoas. "Usar policiais de Santos, Guarujá e Praia Grande na alta temporada para policiar a linha do trem não faz sentido. Não se questiona a importância da atividade econômica do modal ferroviário. Mas por que não se fez um convênio com o Estado para usar policiais durante a folga em operação delegada?" indaga Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para Rafael Alcadipani, professor da FGV, a forma correta de combater roubos de carga é investigar as quadrilhas e prender os ladrões, como na Operação Ferrovia Segura, em março.
Lima e Alcadipani dizem que o Ministério Público deve analisar a suspeita de apropriação privada de meios do Estado. "Esse caso reforça a importância do programa de câmeras corporais da PM, pois com elas é impossível policiais de serviço serem desviados para atender a interesses privados", disse Lima. A maioria dos PMs da Baixada não usa câmera.
Derrite foi contra as câmeras na campanha eleitoral. O Estadão apurou que o comando da PM está sendo pressionado por políticos bolsonaristas para modificar o uso delas. Querem que a câmera não grave mais automaticamente o turno do policial e seja acionada só quando o PM quiser. A mudança abriria caminho a desvios, como a venda da segurança. "Como fica o dono da padaria que é assaltada? Vai querer uma viatura na porta?", questiona o coronel José Vicente da Silva Filho. "O combate ao crime é necessário, mas deve ocorrer dentro da lei."
Nivaldo Restivo, ex-comandante-geral da PM, disse ter certeza de que o comando vai apurar o caso com "isenção e rigor". Também ex-comandante-geral, Rui César Melo lembrou que a PM é instituição com quase 200 anos. "E a missão de quem está lá dentro é preservar essa história. O que está sendo relatado é coisa completamente condenável em termos operacionais e disciplinares."
Trens se tornam alvo de criminosos
De acordo com reportagem do Estadão publicada em 8 de fevereiro, trens de empresas ferroviárias que transportam cargas para o Porto de Santos foram alvo de uma rede criminosa - os bandidos estariam atrás de soja, açúcar, carne e combustível. De acordo com reportagem publicada em fevereiro deste ano, apenas em 2022 teriam ocorrido mais de 100 ocorrências do tipo. A Polícia MIlitar desencadeou uma operação na Baixada Santista para frear a ação de saques de trens e ao menos 22 suspeitos foram presos na época.
Ouvida pelo Estadão, a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) disse que a ação desses criminosos colocava a segurança da população em risco e trazia prejuízos para a economia do País. Na mesma reportagem, a Rumo também se pronunciou, por meio de nota. "Todas as interferências na linha férrea são registradas em boletim de ocorrência, e a concessionária segue mantendo conversas com a Secretaria de Segurança Pública e com os comandos gerais das polícias Militar e Civil", dizia um trecho do comunicado.
Respostas
O empresário Nelson Santini negou haver conflito entre suas atividades empresariais e políticas. "Uma coisa é o trabalho político que faço até hoje, outra coisa é o CNPJ. Eu separo muito bem." Segundo ele, a amizade com o secretário da Segurança, Guilherme Derrite, não influencia as ações de sua empresa, a CampSeg, contratada pela Rumo Logística para vigiar a ferrovia na Baixada Santista (leia aqui).
A Secretaria da Segurança informou que "qualquer denúncia de trabalho fora da instituição envolvendo policiais militares, salvo nas ocasiões em que estes estejam oficialmente licenciados e sem vencimentos, conforme determina a lei, será devidamente apurada". Ainda segundo ela, "as circunstâncias dos fatos que culminaram na morte do policial reformado Reginaldo dos Santos Conceição são investigadas por meio de inquéritos civil e militar"
Tanto a pasta quanto a Rumo Logística realçaram a importância do combate ao roubo e furto de cargas. "Essa é uma das linhas de ação da Secretaria, que vem intensificando o trabalho para identificação e desmantelamento do crime organizado". A Rumo informou que em 2022 foram registradas 80 ocorrências na ferrovia. Só "nos dois primeiros meses de 2023, foram mais de 200, todas registradas em boletins de ocorrência." Segundo ela, esse ataques visam furtos de grãos e combustíveis e colocam vidas em perigo.