Por Maya Gebeily, Anthony Deutsch e David Clarke
BEIRUTE/HAIA, 7 Dez (Reuters) - A tripulação de um tanque israelense matou um jornalista da Reuters e feriu seis repórteres no Líbano em 13 de outubro ao disparar dois projéteis em rápida sucessão a partir de Israel enquanto os jornalistas filmavam bombardeios transfronteiriços, segundo uma investigação da Reuters.
Os dois ataques mataram o jornalista da Reuters Issam Abdallah, de 37 anos, e feriram gravemente a fotógrafa da Agence France-Presse (AFP) Christina Assi, de 28 anos, a pouco mais de um quilômetro da fronteira israelense, perto do vilarejo libanês de Alma al-Chaab.
A Reuters conversou com mais de 30 autoridades de governo e de segurança, especialistas militares, investigadores forenses, advogados, médicos e testemunhas para reunir um relato detalhado do incidente.
A agência de notícias analisou horas de filmagens de oito veículos de mídia que estavam na área na ocasião e centenas de fotos de antes e depois do ataque, incluindo imagens de satélite de alta resolução.
Como parte de sua investigação, a Reuters também coletou e obteve evidências da cena, incluindo estilhaços no chão e presos em um carro da Reuters, três coletes à prova de balas, uma câmera, um tripé e um grande pedaço de metal.
A Organização Holandesa para Pesquisa Científica Aplicada (TNO, na sigla em inglês), um instituto de pesquisa independente que testa e analisa munições e armas para clientes como o Ministério da Defesa holandês, examinou o material para a Reuters em seus laboratórios em Haia.
As principais conclusões da TNO foram de que o grande pedaço de metal era um componente da cauda de um projétil de tanque de 120 mm disparado por um canhão de tanque de cano liso posicionado a 1,34 km de distância dos repórteres, do outro lado da fronteira libanesa.
A Reuters apresentou às Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) suas conclusões de que os projéteis do tanque foram disparados de dentro de Israel e fez outras perguntas detalhadas, incluindo se as tropas israelenses sabiam que estavam atirando contra jornalistas.
O tenente-coronel Richard Hecht, porta-voz internacional das IDF, disse: "Não temos jornalistas como alvo". Ele não fez mais comentários.
O grupo de sete repórteres de AFP, Al Jazeera e Reuters usava coletes à prova de balas e capacetes azuis, a maioria com a inscrição "PRESS" (imprensa, em inglês) escrita em letras brancas. Havia jornalistas de pelo menos outros sete veículos de mídia em Alma al-Chaab e arredores naquele dia.
"As evidências que temos agora, e que publicamos hoje, mostram que uma tripulação de tanque israelense matou nosso colega Issam Abdallah", disse a editora-chefe da Reuters, Alessandra Galloni.
"Condenamos a morte de Issam. Pedimos a Israel que explique como isso pode ter acontecido e que responsabilize os que causaram sua morte e os ferimentos de Christina Assi, da AFP, de nossos colegas Thaier Al-Sudani e Maher Nazeh, e dos outros três jornalistas", afirmou. "Issam era um jornalista brilhante e apaixonado, muito querido na Reuters."
"INEXPLICÁVEL E INACEITÁVEL"
A AFP disse que as evidências reunidas pela Reuters confirmaram sua própria análise do incidente.
"É absolutamente essencial que Israel forneça uma explicação clara para o que aconteceu. O ataque a um grupo de jornalistas que estavam claramente identificados como da mídia é inexplicável e inaceitável", disse o diretor de notícias globais da AFP, Phil Chetwynd.
O gerente de comunicações internacionais da Al Jazeera, Ihtisham Hibatullah, afirmou: "A investigação da Reuters sobre o ataque de 13 de outubro ressalta o padrão alarmante de Israel de atacar deliberadamente jornalistas em uma tentativa de silenciar o mensageiro".
A lei humanitária internacional proíbe ataques a jornalistas. Aqueles que fazem parte da mídia de notícias têm todo o escopo de proteção concedido a civis e não podem ser considerados alvos militares.
Nos dias que se seguiram ao ataque, as Forças Armadas de Israel disseram que estavam analisando o ocorrido, mas não divulgaram nenhuma conclusão.
A especialista em direito penal internacional Carolyn Edgerton, que trabalhou em casos de crimes de guerra nos Bálcãs, disse que filmar as posições dos tanques israelenses na fronteira pode ter sido considerado uma ameaça aos militares israelenses, se essa informação fosse vista como "de valor para as forças no Líbano".
Mas ela disse, em respostas por escrito às perguntas da Reuters, que dois disparos consecutivos contra um grupo de jornalistas claramente identificados "é uma clara violação da lei humanitária internacional e também pode equivaler ao crime de guerra de ataque a civis".
O ataque direto a civis ou objetos civis é estritamente proibido de acordo com as leis de conflitos armados, como as Convenções de Genebra de 1949, que foram ratificadas por todos os Estados-membros da ONU. Nem Israel nem o Líbano são signatários do Tribunal Penal Internacional, cujos 124 Estados-membros aceitam sua jurisdição no julgamento de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio.
37 SEGUNDOS DE INTERVALO
O ataque foi o primeiro de dois disparos letais no espaço de seis semanas contra repórteres no Líbano que cobriam os confrontos entre as forças israelenses e os militantes do Hezbollah, apoiados pelo Irã, ao longo da fronteira, após o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro.
Dois jornalistas da emissora libanesa Al Mayadeen foram mortos por um ataque em 21 de novembro, quando filmavam perto da fronteira com Israel. A Al Mayadeen culpou as forças de Israel pelas mortes. Os militares israelenses disseram em um comunicado que era uma área perigosa para se estar por causa das "hostilidades ativas".
Desde o início da guerra de Gaza, as forças israelenses e o Hezbollah têm trocado disparos quase que diariamente através da fronteira -- conhecida como Linha Azul (BVMF:AZUL4) da ONU, porque foi demarcada para marcar o ponto em que as forças israelenses se retiraram do sul do Líbano em 2000.
No dia 13 de outubro, relatos de combatentes armados tentando se infiltrar em Israel a partir do Líbano e o subsequente bombardeio transfronteiriço atraíram repórteres de pelo menos 10 organizações de notícias libanesas e estrangeiras -- incluindo a emissora italiana Rai, o jornal alemão Die Welt e a Associated Press -- para a área em Alma al-Chaab e seus arredores.
Uma equipe de três pessoas da Reuters dirigiu-se com dois colegas da AFP para um local a leste do vilarejo, onde a Al Jazeera estava transmitindo ao vivo da fronteira.
Uma vez instalada, a Reuters começou a transmitir imagens ao vivo para seus clientes de TV em todo o mundo às 17h16 (12h16 no horário de Brasília), com o som de bombardeios ocasionais pontuando a imagem constante da fumaça que subia por trás de uma colina arborizada ao sul.
Depois de filmar por 45 minutos, em meio ao som incessante de drones no alto e de um helicóptero israelense patrulhando o céu, a equipe da Reuters virou a câmera para focalizar um posto militar israelense a pouco mais de dois quilômetros de distância, em Hanita, e filmou um tanque disparando um projétil de lá para o sul do Líbano.
As equipes da AFP e da Al Jazeera também estavam transmitindo ao vivo e moveram suas câmeras ao mesmo tempo para mostrar também o posto militar israelense em Hanita.
Menos de 90 segundos depois, o primeiro de dois disparos de tanque de um posto avançado diferente atingiu Abdallah e o muro baixo no qual ele estava apoiado, matando-o instantaneamente e derrubando a transmissão ao vivo da Reuters.
Os tripés que seguravam as câmeras da AFP e da Al Jazeera estavam a alguns metros de distância e continuaram a transmitir, capturando nuvens de poeira que se erguiam atrás deles e os gritos de Assi, da AFP, que havia sido atingida nas pernas por estilhaços.
Trinta e sete segundos depois, um segundo projétil atingiu o carro da Al Jazeera, incendiando-o, encerrando a transmissão da AFP e derrubando a câmera da Al Jazeera -- deixando-a filmando nuvens no alto do céu e capturando os gritos dos jornalistas feridos.
"Por que fomos atingidos? Por que não dispararam um tiro de advertência? Se não querem que tiremos fotos, disparem um tiro de advertência. Por que nos atingiram de repente, sem aviso prévio, e depois tentaram acabar conosco com o segundo ataque?", disse o jornalista da Reuters Al-Sudani, de 47 anos, fotógrafo baseado em Bagdá.
CONCLUSÕES
As conclusões a que chegaram os pesquisadores da TNO se basearam fortemente em três evidências cruciais: o componente de alumínio da cauda do projétil do tanque obtida pela Reuters; um vídeo inédito fornecido pela emissora italiana Rai que mostra o ponto de lançamento do segundo ataque, bem como o projétil do tanque em voo; e o áudio do disparo e do impacto de ambos os projéteis obtidos da transmissão ao vivo da Al Jazeera.
Fotografias e vídeos feitos por Al-Sudani e pelo cinegrafista da Reuters Nazeh, nos minutos após o ataque, mostram o componente da cauda do projétil no chão, perto do corpo de Abdallah, em um campo atrás do muro baixo atingido pelo primeiro disparo.
A TNO disse que uma imagem de satélite de 12 de outubro e uma foto tirada por Abdallah pouco antes do ataque não mostram sinais de impactos de munição anteriores, como crateras, detritos ou marcas de queimadura, por isso determinou que aquele componente do projétil estava relacionado ao ataque.
A análise laboratorial revelou estrôncio e magnésio no componente do projétil, elementos que são compostos típicos de traçantes, disse a TNO. Um traçante é uma carga pirotécnica que queima durante o voo de um projétil para mostrar para onde ele está indo.
Com base em suas características, a grande peça de metal recuperada da cena do incidente foi identificada como um componente da cauda de uma "munição de tanque de 120 mm com um traçante que foi disparado usando uma arma de tanque de cano liso de 120 mm", disse a TNO.
As brigadas blindadas implantadas no norte de Israel pelas IDF são equipadas com tanques de batalha Merkava, que têm canhões de cano liso de 120 mm, disse Nick Reynolds, pesquisador do Royal United Services Institute, em Londres.
Não há registro de que o Hezbollah opere tanques com armas de 120 mm, disseram três especialistas militares. O Exército libanês afirmou à Reuters que a munição de maior calibre para seus tanques é de 105 mm e que não havia tanques estacionados na fronteira com Israel.
"Acredito que faz parte da estratégia militar de Israel matar jornalistas para que eles matem a verdade", declarou o ministro da Informação do Líbano, Ziad Makary.
Ele disse que, após a investigação da Reuters, o governo estava considerando apresentar uma ação sobre as violações israelenses, incluindo a morte de Abdallah, em um tribunal internacional. Ele não especificou qual tribunal, mas reconheceu que o Tribunal Penal Internacional (TPI) não era uma opção, pois o Líbano não é signatário.
No dia seguinte ao ataque, as forças de segurança do Líbano disseram que realizaram uma avaliação técnica no local, o que implicou Israel. O Exército libanês e a inteligência militar não responderam às solicitações para ver a avaliação técnica.
(Reportagens de Maya Gebeily, em Beirute; Alma al-Chaab e Anthony Deutsch, em Haia; e David Clarke, em Londres; reportagem adicional de Laila Bassam, Tom Perry e Emilie Madi, em Beirute; James Mackenzie, em Jerusalém; George Sargent, Eleanor Whalley e Simon Gardner, em Londres; Milan Pavicic, em Gdansk; Riham Alkousaa, em Berlim; Haider Kadhim, em Bagdá; e Simon Scarr, em Cingapura)