“Não basta ter a voz mais melodiosa para entoar um tango. Não. É preciso senti-lo. Há que se viver o seu espírito.” Difícil discordar de Carlos Gardel neste tema. Buffett diria que ele está em seu círculo de competência. O povo argentino parece mesmo atender a uma vocação especial para a dramaticidade.
Surpreendendo o consenso, Sérgio Massa, o candidato da situação, liderou o primeiro turno das eleições na Argentina. Num primeiro momento, pelo menos, a posição foi interpretada como uma vitória do kirchenerismo (ou do peronismo, se preferir) e da esquerda latino-americana. Será mesmo o caso?
A princípio, Milei e Bullrich representam o espectro da direita e, de novo, ao menos de largada, deveriam gozar de maior proximidade ideológica. Somados seus votos, ultrapassam com folga o percentual capturado por Massa. O risco para a direita seria Milei ser percebido como um lunático radical, pronto para ir para o arriscado tudo ou nada. Então, Macri (e todo o establishment ortodoxo) poderia se aproximar de Massa, que viria para o centro num governo de Frente Ampla. Milei, no entanto, já abranda seu discurso e tenta se aproximar do mainstream, mostrando-se agora como menos radical e disposto a também convergir para o centro. Aliás, a pior coisa que poderia acontecer com a direita seria eleger um aventureiro inconsequente. Medidas inconsequentes costumam ter consequências profundas e perversas. Uma eventual tragédia imposta por um plano anarco-capitalista radical poderia macular indevidamente o liberalismo na Argentina e condenar o país a uma espécie de perpetuidade do peronismo. Cada país tem o liberal que merece — Friedman e Hayek se contorcem no túmulo.
Nesse sentido, o segundo lugar pode ser pedagógico para Milei, que deveria caminhar em direção a Macri. Em sendo o caso, haveria todas as condições ainda de ser eleito, com um discurso mais ortodoxo e centrista. Indo por aí, o mercado reagiria positivamente, ao menos no curto prazo, levando os bonds argentinos para algo mais próximo a 40% do valor de face. Então, seria a hora de vender. O tamanho do problema argentino não é obra do acaso (pelo menos, não apenas do acaso). Foi necessário muito esforço para produzir uma tragédia desse tamanho. O sacrifício social de curto prazo necessário para realizar o ajuste não goza do necessário apoio popular. Aí a tentação de arriscar uma solução mágica chega para visitá-los justamente na hora mais escura. Somos velhos demais para acreditar em solução mágica.
Na ausência de um, acordamos com dois tangos tristes (pleonasmo?) nesta segunda-feira. O yield dos Treasuries de 10 anos bateu a fatídica marca de 5%. Tecnicamente, não há muita diferença entre 4,98% e 5%, mas essas barreiras psicológicas servem de acionamento de ordens de stop e chamam atenção do investidor marginal. Como lembrou recentemente Jamie Dimon, ir dos 3% para os 5% é bem diferente de irmos dos 5% para os 7%. Nesses níveis mais altos, coisas estranhas começam a acontecer. O risco de aparecer uma baleia boiando, encontrar um cadáver no meio da pista ou trombar com a mula sem cabeça no elevador do prédio aumenta bem.
Eu nunca comprei muito essa história do “no landing”. Temos uma tendência arraigada em extrapolar para o futuro as condições presentes e perpetuá-las. Antes, o juro seria zero para sempre, o home office tinha virado tendência secular e não haveria mais escritórios corporativos grandes, lojas físicas seriam extintas, por aí vai. Agora, o juro não vai parar de subir nunca e a economia vai continuar crescendo sem percalços.
Assim, violamos um princípio básico de ciclicidade da economia e dos mercados. O preço do cobre já nos emite um sinal importante nessa direção hoje e ele costuma ser um bom indicador antecedente da atividade econômica.
Acreditar em “no landing” da economia norte-americana seria, em grande medida, desqualificar os efeitos da política monetária. Romperíamos com os livros-texto — como aliás tentamos fazer recentemente com aquele absurdo da moderna teoria moderna (em outro sentido); deu no que deu.
Como todo mundo travou taxas muito baixas por bastante tempo quando o juro estava zero (famílias, empresas e compradores de imóveis), talvez os efeitos da política monetária demorem um pouco mais, mas eles serão sentidos. Ou desta vez é diferente para a política monetária?
As taxas de juro nominal em papéis soberanos de 10 anos a 5% ao ano chamam a atenção — nada mal para os formadores de poupança de longo prazo. Contudo, os TIPS (as NTN-Bs dos EUA), pagando 2,5% real me parecem particularmente mais atraentes. Ainda que o movimento técnico de curto prazo possa empurrar essas taxas para níveis ainda maiores, está um tanto claro o descolamento sobre o fundamento de longo prazo — seria bastante improvável convivermos com juros reais de 2,50% nos EUA por 10 anos.
Além da oportunidade em si, isso é particularmente importante porque baliza o apreçamento de todos os demais ativos no mundo. Em especial neste momento, tudo virou uma grande sensibilidade em cima dos Treasuries e dos TIPS. Se a coisa acalmar por lá (como deve mais à frente), as curvas de juro em países emergentes também deveriam ir pelo mesmo caminho. Com efeito, sempre que compramos NTN-B pagando 6% de juro real no Brasil ganhamos dinheiro.
Obviamente, isso se desdobra para nossas posições em Bolsa. Uma anedota para ilustrar o ponto. Na sexta-feira, almocei com um grande amigo que me lembrou o seguinte: “quando comprei as ações de Direcional (BVMF:DIRR3) a R$ 10, elas estavam mais caras do que hoje. Agora, a R$ 16,71, negociam a 5x lucros, abaixo do que eram lá atrás, quando nem existia a Riva, eram muito muito menos líquidas e não havia ciclo de afrouxamento monetário em curso. Esse é só um caso. Tem coisa muito barata hoje e é por isso que estou reduzindo meus shorts. Tudo deveria andar bem quando o Treasury acalmar.”
Claro que o “quando" aí importa. Uma ideia boa na hora errada é apenas uma ideia errada. Mas poucas coisas são menos arriscadas do que comprar uma excelente empresa ao preço certo.
À luz dos acontecimentos recentes e da provável desvalorização adicional do peso, vão tentar convencê-lo a reservar o Dom Julio e tomar um Malbec. Nada contra, mas prefiro o pinot da Patagônia para jantar no Crizia. Alguns trades são óbvios, outros nem tanto. Qualquer paixão me diverte, mas sem muito drama. Vida longa ao rock.