O grande divisor de águas dos tempos de democracia moderna no Brasil é a Constituição de 1988, a famigerada Constituição Cidadã. Acabávamos de sair de um período pouco democráticol de duas décadas e o mote era então ampliar os direitos a todos. Educação, saúde, segurança e tudo mais: agora, na letra da lei, tudo deveria alcançar a todos. Uma ideia excelente que, como tanta coisa por aqui, consegue ser distorcida nos dias de hoje.
Paradoxalmente, a existência de grupos de interesse no momento da formatação da Constituição Cidadã se dá como prejudicial ao todo (por deixar o processo menos democrático) e também como fator agregador (ao permitir que, de uma maneira ou de outra, grupos que antes da Constituinte não tinham voz agora pudessem ter) [1]. Nossa jovem democracia ainda observa efeitos positivos e negativos dessa atuação.
Recentemente tivemos a aprovação da Emenda Constitucional 55 (a do Teto de Gastos), esta cujos efeitos ainda não foram bem percebidos, mas o filme já tem seus minutos iniciais de exibição: diversos grupos de interesse bradam, diante da restrição orçamentária imposta, que todos os direitos pré-estabelecidos devem continuar. Não se trata de negar direitos estabelecidos, mas de analisar melhor as escolhas feitas; é no mínimo curioso o que “direito” tem se transformado por aqui, um país tão carente de investimento em algumas áreas e tão exemplar em abundância de outras.
Em nome da frase pronta “está na Constituição”, alguns grupos de interesse já tem se movimentado para assegurar que, como diriam os mais antigos, “se a farinha é pouca, meu pirão vem primeiro”.
Um caso emblemático é o da Associação de Juízes Federais que, em dezembro de 2017, levantou a bandeira de um reajuste no auxílio moradia de seus representados [2]. Se por um lado temos novamente o fator “estar na Constituição”, por outro, é de se parar ao menos cinco minutos para pensar: será mesmo que um profissional com salário de pelo menos vinte mil reais (já líquidos de impostos e contribuições) precisa de um auxílio como esses?
Não se trata aqui de apontar o que seria correto ou não estar na Constituição como direito, até porque, para propor alterações, o mais correto seria concorrer a um cargo legislativo ou incentivar algum parlamentar a colocar em pauta algum projeto do tipo.
Entretanto, diante de um orçamento que é formado por recursos de todos e que, por uma questão lógica e também legal é limitado ano a ano, como sociedade deveríamos mesmo questionar o encaminhamento destes recursos [3].
Desde o encaminhamento inicial do projeto de Teto dos Gastos tem-se como intensa a discussão sobre o que viria a ocorrer com essa imposição. Parlamentares que foram contrários a sua aprovação apontavam que áreas primordiais sofreriam com isso – mas “esqueceram-se” de levantar que isso não ocorreria necessariamente por falta de recursos, mas pelo direcionamento realizado pelo Congresso Nacional.
Cristovam Buarque, em uma quase aula-magna ao final de 2016, acerta em cheio a questão: com a aprovação deste teto constitucional de gastos, não há mais espaço para bradar aos cidadãos que todo e qualquer tópico é prioridade [4]. A demagogia de elencar todos os assuntos possíveis como sendo prioridades teria um fim. E este fim, caso ainda não esteja claro, muito em breve ficará.
Este fim pode vir a ser triste ou como um aprendizado. No primeiro caso, os que sempre tiveram o direcionamento do poder e dos recursos continuarão tendo, em nome dos direitos já estabelecidos (mesmo que, em uma análise rápida, eles não façam tanto sentido assim). No segundo caso, aprenderemos em termos de orçamento público o que o orçamento privado já conhece [5]: direcionar mais para uma área vai resultar em menos possibilidade para outras [6].
Este artigo não é uma defesa do corte de recursos para uma área ou outra, simplesmente, mas sim de uma reflexão que, caso ainda não esteja, certamente estará na mente da maioria dos brasileiros nos próximos anos. Em nosso país o problema está longe de ser a falta de recursos: a questão mais grave é relacionada a uma recorrente má alocação destes.
Isso significa que teremos de recorrer a uma mudança em direitos já adquiridos [7]? Talvez sim. Qual o custo de não fazer isso? A conta seguir não fechando – e quem já estiver perdendo hoje ficar em uma carência de recursos cada vez maior.
Se sua opinião for a de que nada devemos fazer e que o cenário aqui descrito é de tão longo prazo que não valha a pena discutir isso agora, dê uma olhada no que está acontecendo na esfera pública do Rio de Janeiro. Apenas um exemplo para fazer pensar: em novembro de 2017, enquanto mais de 220 mil servidores públicos estavam com salários atrasados, o Tribunal de Justiça de lá já havia depositado o “auxílio-peru” de seus membros [8].
Estar na letra da lei é suficiente para que alocações um tanto quanto surreais venham a ocorrer? Nenhum direito estabelecido deveria ser discutido para permitir que quem precise mesmo do acesso a uma ação governamental possa receber tal amparo? Se sua resposta for sim para a primeira pergunta e não para a segunda, poupe a todos nós de reclamações em um futuro (bastante próximo) em que os menos favorecidos tenham cada vez menos provimento do Estado, pois não tomar atitudes, neste caso, é o mesmo que tomar uma péssima atitude.