Valor, Margem de Segurança e a Arte de Não Fazer Nada

Publicado 23.09.2020, 17:14

Nos últimos meses, discutimos o baixo desempenho das ações de valor em comparação com as ações de crescimento. Apesar de muitos investidores descartarem de imediato essa lacuna de performance sob o pretexto de “desta vez é diferente”, as implicações disso no longo prazo são enormes.

Hoje vamos falar sobre valor, margem de segurança e a verdadeira arte de não fazer nada.

Desta vez é diferente

Um artigo recente publicado no MarketWatch defendeu por que o ciclo atual é diferente dos anteriores.

“Os investidores parecem querer abraçar o viés do valor – ações que se sairão melhor assim que a recuperação econômica ganhar fôlego. Entretanto, elas continuam ficando atrás das ações de crescimento, que comprovadamente têm se saído bem em momentos de incerteza. Mas, e se essa antiga concepção de “valor” e “crescimento” for uma forma errada de avaliar os movimentos de mercado?”

Se você reler a declaração com atenção, diversas questões vêm à tona.

  1. Se as pessoas continuarem indo atrás de ações que estão subindo no mercado, estariam especulando e correndo atrás dos preços, em vez de comprar valor.

  2. Não há nada de errado com a concepção de “crescimento" e “valor”, salvo em períodos em que esse conceito não se coaduna com o fervor especulativo do mercado.

Investir vs. Especular

Atualmente, a maioria dos investidores está simplesmente em busca de performance. Mas por que NÃO esperar que isso aconteça?  Diariamente, a mídia e Wall Street pressionam os investidores a correr atrás dos preços em alta, dizendo que “desta vez é diferente”.

É justamente aí que começamos a compreender a diferença entre investir com base em valor e especular em busca de ganhos de curto prazo.

Permita-me dar um exemplo:

Você está jogando pôquer, e o dealer distribui esta mão para você:

 Cartas

Como você apostaria? Muito, pouco ou passaria?

Mesmo um conhecimento superficial de pôquer é suficiente para ver que outros jogadores provavelmente têm uma mão melhor que a sua. Instintivamente, você sabe disso e sua tendência seria fazer um “fold” e esperar a próxima mão.

Agora, essa operação é “investir” ou “especular”?

A resposta parece óbvia: quando você entra em uma operação em que o resultado depende mais da sorte do que da habilidade, isso é especulação.

Phillip Carret, que escreveu o livro A Arte da Especulação (1930), definiu isso de forma mais elegante:

“Especulação pode ser definida como a compra ou venda de papéis ou commodities na expectativa de lucrar com as flutuações em seus preços’”.

Perseguir os mercados é a forma mais pura de especulação. Não passa de uma aposta de que os preços vão subir, em vez de determinar se o preço pago pelos ativos apresenta algum desconto em relação ao seu valor justo.

O descarte do valor

O que o texto do MarketWatch expõe é a mesma coisa da Teoria do Mais Tolo.

“A Teoria do Mais Tolo prega que é possível fazer dinheiro comprando ativos, não importa se estão sobrevalorizados ou não, para vendê-los com lucro em data futura. Isso acontece porque sempre haverá alguém (isto é, uma pessoa mais tola) querendo pagar um preço maior”.

Essa também é a mais pura definição de especulação no mercado.

Benjamin Graham, ao lado de David Dodd, tentou uma definição precisa de investir e especular em sua obra seminal Security Analysis (1934).

“Uma operação de investimento é aquela que, através da análise, promete a segurança do principal e um retorno satisfatório. As operações que não atendam a esses requisitos são especulativas.”

Graham também ressaltou por que as pessoas devem se preocupar ao ler artigos defendendo que “desta vez será diferente”.

“A distinção entre investimento e especulação em ações ordinárias sempre foi útil e sua desaparição é motivo de preocupação.” – O Investidor Inteligente

Em vista da forte alta nos mercados desde março, não é de surpreender que a mídia venha com muito papo furado para justificar a sobrevalorização dos ativos. Mas Graham prossegue dizendo que a mídia deveria seguir um caminho distinto.

“Dissemos com frequência que Wall Street como instituição estaria bem assessorada para reafirmar essa distinção e enfatizá-la em todas as suas interações com o público. Do contrário, as bolsas de valores podem um dia ser culpadas por perdas extremamente especulativas, para as quais aqueles que as sofreram podem não ter sido devidamente alertados.” – Ben Graham, O Investidor Inteligente

Por que o investimento em valor vence no longo prazo

Ao longo da história do mercado, os investidores frequentemente abandonam os princípios do investimento em valor e mantêm uma “margem de segurança” durante períodos de euforia. Nos últimos tempos, os investidores têm pagado caro por sua especulação. Pagar demais por valor repetidas vezes gera péssimos resultados financeiros.

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O que é “margem de segurança"

Ben Graham fala bastante sobre a importância de uma “margem de segurança” na operação de investimento. A margem de segurança é usada pelo investidor apenas na compra de ativos cujo preço de mercado esteja significativamente abaixo do seu valor intrínseco.

“Confrontados com o desafio de explicar o segredo do investimento seguro em três palavras, criamos o lema: Margem de Segurança” – Ben Graham

Os seguidores dos ensinamentos de Ben Graham têm um profundo histórico de sucesso com investimentos de longo prazo, desde Warren Buffett até Seth Klarman:

“Os melhores investimentos têm uma considerável margem de segurança. Esse é o conceito de Benjamin Graham de comprar com um desconto suficiente, de modo que até mesmo a má sorte ou as vicissitudes do ciclo de negócios não estraguem um investimento. Da mesma forma que se constrói uma ponte para aguentar caminhões de 30 toneladas, mas só passam por ela caminhões de 10 toneladas, nunca é adequado submeter seus investimentos a um cenário em que tudo tem que acontecer perfeitamente, em que todas as suas interpretações devem estar corretas e tudo deva ir do jeito que você planejou”. Seth Klarman

A realidade ao investir é que raramente tudo sai do jeito que planejamos. A margem de segurança é uma precaução contra o inesperado, caso ele ocorra.

Exemplo de valor intrínseco

Investir usando uma margem de segurança não é tão fácil quanto parece. A grande maioria dos investidores de varejo hoje não pesquisa as empresas nas quais investe. Eles seguem as recomendações de compra de veículos de imprensa, sites e tuítes do mundo financeiro. Ou pior ainda, simplesmente compram o que está “ganhando” no curto prazo.

A verdade é que o conceito de margem de segurança só é encontrado através de pesquisa para descobrir os fatores qualitativos e quantitativos de uma companhia. Esse trabalho inclui a compreensão da gestão de uma empresa, sua governança, desempenho setorial, ativos e resultados. A partir daí, o investidor deriva o valor intrínseco de um ativo.

Depois de fazer a lição de casa, o preço do mercado é usado como ponto de comparação para calcular a margem de segurança. Como observa o relatório CVS:

“O CVS está atualmente precificado com grande desconto em relação ao seu valor intrínseco. Prevemos um potencial de alta de cerca de 47,1% na ação”.

É por isso que Warren Buffett afirma que a margem de segurança é um dos pilares do investimento. Assim como ele, devemos aplicar um desconto de 50% ao valor intrínseco de uma ação para determinar seus preços-alvo.

Entretanto, em um mercado que está sobrevalorizado segundo diversas métricas, encontrar valor passa a ser difícil. Ademais, manter ações de valor que apresentam baixo desempenho em relação às “ações do momento” no mercado é ainda mais desafiador.

Arte de não fazer nada

Atualmente, o investimento em valor claramente está em desvantagem. A estratégia não tem funcionado há bastante tempo, por isso não surpreende que a mídia declare que “o investimento em valor morreu”. Como mostramos naquele artigo:

“O gráfico abaixo apresenta os retornos totais anualizados em uma década (incluindo dividendos) para ações de valor vs. ações de crescimento. Os dados mais recentes, cobrindo os anos de 2009 a 2019, ficam em -2,86%. Isso indica que as ações de valor registraram um desempenho 2,86% abaixo das ações de crescimento em média em cada um dos últimos dez anos”.

Retorno total entre ações de valor, crescimento nos últimos 10 anos

 

É possível tirar duas lições do gráfico acima:

  • Nos últimos 90 anos, as ações de valor apresentaram um desempenho médio anual 4,44% melhor que as ações de crescimento (linha laranja).

  • Só houve oito ocasiões nos últimos 90 anos em que as ações de valor ficaram atrás das ações de crescimento. Dois deles ocorreram durante a Grande Depressão e outro aconteceu durante os anos 1990, culminando na bolha da tecnologia de 2001.  Os outros cincos são recentes e ocorreram entre os anos de 2014 e 2019. 

Contrastes no espelho

O gráfico mostra a diferença de desempenho no índice “valor vs. crescimento”.  Sua comparação é feita com o índice de crescimento puro, cada um baseado em um investimento de US$ 100. Embora o investimento em valor sempre forneça retornos consistentes, há momentos em que o crescimento supera o desempenho do valor. São notáveis os períodos em que o investimento em valor apresenta o melhor desempenho, conforme as áreas sombreadas em azul.

Crise em valor e crescimento

 

Então, o que os investidores devem fazer quando não conseguem encontrar valor real para investir? A despeito do que diz a mídia, de que você sempre deve ficar investido independente do resultado, há uma opção. Não fazer nada.

Arte de não fazer nada

Esse foi o ponto defendido recentemente por Jesse Felder:

Talvez a lição mais importante de investimento que aprendi é que, se não houver nada para fazer, não devo fazer nada. O problema é que ficar sem fazer nada pode ser extremamente difícil. Todos nós queremos ter a sensação de que somos proativos, e isso requer fazer alguma coisa, mesmo que não tenha nada para fazer.  Portanto é preciso ter bastante disciplina para resistir ao ímpeto de fazer alguma coisa e se comprometer a não fazer nada. Dessa forma, no entanto, se comprometer a não fazer nada provavelmente é a decisão mais proativa a ser tomada.

Seu comentário compara o que é investimento e o que é especulação.

Ao investir, buscamos empregar capital em uma operação com potencial de entregar um alto retorno sobre esse investimento. Por isso, logicamente, se não houver a oportunidade de investir com a necessária margem de segurança, a melhor operação é não fazer nada.

Você não pagaria por um imóvel mais do que ele vale. Ao fazer compras, você sempre busca os melhores preços, desde televisores até carros. Mas, quando o assunto é investir, por que você pagaria qualquer preço para um fluxo de renda no futuro?

Conclusão

Outra forma de pensar sobre isso é ver os erros que os investidores cometem na maioria das vezes por causa dessa necessidade de fazer alguma coisa, de ser proativos, em vez de simplesmente esperar pacientemente para reagir a uma oportunidade realmente fantástica. Em vez de reagir apenas a uma oportunidade de verdade, eles reagem a uma pressão social ou inveja quando veem seu vizinho “arrasando” em ações de tecnologia, como nos anos 2000, ou no mercado imobiliário, como em 2005, ou no mercado de opções atualmente. – Jesse Felder

Como sempre acontece, parece que os investidores estão fazendo dinheiro “com a mão nas costas”, enquanto o mercado sobe. Entretanto, não faltam histórias que nos mostram o que acontece quando a inevitável queda faz o capital virar pó em um instante.

Concordo com a conclusão de Jesse:

Neste momento, em razão da extraordinária circunstância do mundo, política, economia, política monetária, etc., o ímpeto para fazer alguma coisa é maior do que o normal. Porém, a oportunidade de colocar o dinheiro para trabalhar simplesmente não existe.  Pelo menos por enquanto. Mas chegará logo. E, até lá, a coisa mais proativa que um investidor pode fazer é simplesmente se comprometer a não fazer nada.  É preciso entender que não se trata de uma decisão passiva, mas de uma ação extremamente proativa, na verdade.

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