A atual era de juros básicos próximos de zero nos EUA é marcada pelo uso de instrumentos não tradicionais de política monetária, como a compra de títulos públicos longos e de ativos financeiros privados, o quantitative easing (QE). Adicionalmente, os executores de política monetária também utilizam da capacidade de interferir nas expectativas dos agentes econômicos apenas com o poder da comunicação, prática conhecida como operações de open mouth (boca aberta), em alusão a atuação tradicional dos bancos centrais em operações de open market (mercado aberto).
Série Especial – Inflação nos EUA: a Batalha entre Fed e Mercado
O Federal Reserve (Fed) tem utilizado seu poder de open mouth de forma eficaz: conseguiu ancorar as expectativas dos juros longos e achatar a curva de rendimento apenas com uma efetiva comunicação, seja oficial seja por meio de manifestações de seus dirigentes em mídia diversas. Bastou mostrar ao mercado que o FED está atento ao aumento da inflação, sem tomar qualquer atitude concreta de aumento da taxa de juros básica ou redução no volume de compras do QE. A taxa de 10 anos caiu de 1,70% em março para o patamar próximo a 1,30% em agosto, a despeito do alarde de vários analistas econômicos de que a taxa longa iria explodir como efeito dos estímulos fiscais. Já a Ata do Federal Open Market Committee (Fomc) divulgada em 18 de agosto, sinalizando o início do debate acerca da redução das compras de ativos financeiros, o chamado tapering, não veio acompanhada de um aumento significativo dessa taxa longa.
Um momento esperado pelo mercado para esse tipo de atuação é no simpósio de política econômica do escritório regional do Fed de Kansas City, que acontece nos meses de agosto em Jackson Hole. Trata-se do maior ponto de encontro entre os executores da política monetária e a academia, notório por contar anualmente com a presença do ocupante da cadeira de presidente do Fed. O curioso é que a cidade do estado de Wyoming foi escolhida em 1982 devido aos lagos do vale, propícios para a pesca, para agradar o famoso então presidente do Fed, Paul Volcker. O mesmo Volcker que, alguns anos antes, em 1979, traumatizou os mercados com uma elevação sem precedentes na taxa de juros americana, que marcou a guinada histórica da política antiinflacionária do Fed, levando a uma recessão mundial e forte valorização do dólar em relação a outras moedas, além de ter sido uma das causas principais da crise da dívida externa de muito países em desenvolvimento no início dos anos 1980.
O simpósio de 2020 também vai ficar para a história pela ousadia de Jerome Powell, ao apresentar uma mudança no regime de metas de inflação, sinalizando que está disposto a tolerar um nível de inflação maior no curto prazo, para atingir a meta de 2% apenas numa média, considerando um prazo maior do que o ano calendário. A mudança ocorre por reconhecer que a inflação não tem o padrão da década de 1970 e início dos 1980 de acelerar mês a mês, após um choque de demanda.
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Apesar da magnitude da inflação ter surpreendido esse ano, próxima a 4% em 12 meses -- segundo o PCE, indicador adotado para a meta -- o Fed ainda aposta na tese de que se trata de um aumento temporário de preços (reflação), adicionado a uma mudança forte de preços relativos de alguns itens, como os carros e semicondutores, e aumento de salários relativos de trabalhadores menos qualificados, devido aos gargalos advindos da reabertura da economia e as restrições impostas pela pandemia. Evidência disso é que os aumentos de preços não têm sido repassados ao conjunto dos salários, que já contam com perdas de poder de compra. Dessa forma, não há um processo geral de realimentação da inflação no mercado de trabalho. O indicador mensal de inflação ao consumidor (segundo o IPC) de julho (0,5%) já mostrou queda em relação ao dado de junho (0,9%).
É possível que Powell reafirme, em Jackson Hole, que está atento aos indicadores e que irá responder prontamente em caso de descontrole inflacionário, gerando pistas de atuação frente a diferentes cenários e riscos associados. Porém, é improvável que o presidente anuncie e se prenda a um calendário rígido de aumento de juros ou de tapering, a ponto de causar uma reversão abrupta nos mercados acionários e de juros. É preciso considerar que o Fed já teve uma curva de aprendizado e houve uma avaliação de que o tapering, anunciado em 2013, foi precipitado. Adicionalmente, vale notar a convergência de pensamento de Powell e a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, que pode administrar as novas colocações de títulos junto com as eventuais diminuições de compras por parte do Fed, no sentido de minimizar oscilações abruptas nos mercados. Mais provável que Powell seja bastante cuidadoso com as palavras, transmitindo segurança e reafirmando a efetividade da sua opção de política anunciada no simpósio do ano passado.